Geraldo Rosolen Junior


A NARRATIVA EM WALTER BENJAMIN E AS TRANSFORMAÇÕES DA IDENTIDADE CRISTÃ NA PRIMEIRA IDADE MÉDIA ATRAVÉS DOS SERMÕES SOBRE A QUEDA DE ROMA



Esta pesquisa teve por intencionalidade discutir a compreensão de Walter Benjamin acerca das construções das narrativas, tendo como plano de fundo a discussão dos sermões sobre a queda de Roma por Agostinho de Hipona para compreender a edificação de novos discursos e transformações da identidade cristã na Primeira Idade Média sob as migrações dos povos germânicos no século V.

A narrativa em Walter Benjamin
Para Walter Benjamin, a narrativa é: “a faculdade de intercambiar experiências” [Benjamin, 1987, p.198] para ele, a narrativa compõe parte do processo cognoscitivo e intelectual humano de reproduzir o momento vivido e desenvolver memórias relacionadas às experiências do cotidiano de um indivíduo que está inserido na mesma temporalidade em que escreve.

Esta perspectiva parece ir de encontro àquilo que Hannah Arendt [2016] aborda como sendo o conceito de História na Antiguidade Clássica, ao qual, desenvolve em nota de rodapé uma importante discussão sobre a gênese da palavra, nomenclatura esta que ela propõe ser uma herança de Cícero:

“o vocábulo istoría deriva de id-, ver, e ístor significa originalmente “testemunha ocular”, e posteriormente aquele que examina testemunhas e obtém a verdade através da indagação. Portanto, istoreín possui um duplo significado: testemunhar e indagar” [Arendt, 2016, p.69].

Esta dualidade da morfologia do termo ‘História’ tem suas relações inteiramente ligadas à percepção temporal da Antiguidade Clássica, pois, os verbos “testemunhar” e “indagar” apresentam uma conotação que coloca os historiadores do período clássico como agentes importantes para os relatos de grandes feitos a posterioridade, pois o testemunho e a indagação de um historiador poderiam consagrar e imortalizar pessoas e feitos, além de atribuir a estes indivíduos uma significativa parcela de glória. Assim, o historiador surge para conter os infindáveis avanços do tempo, a fragilidade e a mortalidade da memória, enquanto processo cognoscitivo humano, e dos feitos dos homens. Deste modo, a tarefa do historiador consistia em não interferir e não expressar sua intencionalidade ao objeto que se destina à narrativa, mas apenas relatar as ações dos homens sem uma predileção dos antagonismos que se inserem nestas histórias, pois inseridos nessa temporalidade eles entendiam que: “a transformação de eventos e ocorrências singulares em História era, em essência, a mesma ‘imitação da ação’ em palavras mais tarde empregada na tragédia grega” [Arendt, 2016, p.74]. Logo, a escrita da história consistia em uma tentativa de consolidar qualidades e eventos heróicos.

Poderíamos considerar, portanto, as influências da memória na escrita narrativa. Benjamin, assim como para Arendt, acredita que as palavras e as escritas têm como função tornarem-se patrimônio dos eventos ocorridos e narrados pelo escritor, isto é, para ele a narrativa moderna segue os exemplos e definições da Antiguidade e Idade Média, a qual deseja preservar e imortalizar os eventos épicos, a fim de, legitimar ou deslegitimar os personagens nela inseridas.

Quentin Skinner, ao discursar sobre as significações e os impactos da linguagem, utiliza Paul Ricoeur para delinear que os textos produzidos contêm uma gênese temporal e simbólica do qual o autor expressa seus interesses e escolhas, contudo, Skinner evidencia que o processo de leitura tendo-se estabelecido em outra temporalidade, expressa para si novas indagações, que permitem as constantes reinterpretações associadas à justificativa, de que, o tempo passado não permite refutar as constantes expressões temporais do presente em que se insere as críticas literárias e narrativas: “Aquilo que um texto tem para nos dizer interessa-nos hoje muito mais do que aquilo que o autor pretendia dizer.” [Ricoeur apud Skinner, 2002, p.130]. Com isso, a leitura e as representações, constituem um processo dialético que se estrutura através da relação de três partes: o escrito original do autor, as interpretações passadas e as constantes reinterpretações presentes. Assim, o processo de entendimento e interpretação é adaptativo, pois, está definido e limitado pelos objetivos do tempo em que se insere [Skinner, 2002].

Embora Benjamin não caracterize a narrativa enquanto uma escrita lendária, o paralelo com a percepção histórica de Hannah Arendt é indissociável, contribuindo para o entendimento que a narrativa também pode evidenciar traços históricos do momento vivido pelo narrador, pois, para Benjamin a narrativa contempla a capacidade de expressar as experiências vivências e coetâneas ao narrador legitimam-se a partir de dois aspectos, o primeiro a partir de sujeitos detentores de experiências, conhecimentos de tradições vivenciadas que extrapolam suas origens e identificações e, a partir de tais compreensões e referências fariam um julgamento de valor acerca de suas próprias visões de mundo, relendo as tradições externas que vivência, ou seja, projeta um julgamento às tradições e moralidade através de seus próprios valores, o segundo sujeito narrador, teria sido para ele, aqueles que não tomando contato com outros povos tendem a representar suas próprias tradições e valores, propiciando as representações acerca de si mesmo e da sociedade em que se insere. Benjamin busca representar ambos narradores através, de analogias a camponeses e marinheiros, sem que a narrativa de um anule a de outro, mas identificando que os impactos para o desenvolvimento da narrativa estão diretamente ligados às relações com espaço-tempo de seus autores, por vezes, se interligando aos diversos modos possíveis:

“A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. ‘Quem viaja tem muito a contar’, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário, e outro pelo marinheiro comerciante. Na realidade, esses dois estilos de vida produziram de certo modo suas respectivas famílias de narradores” [Benjamin, 1987, p.198-199].

Esta relação espaço-temporal, também assume na Antiguidade Tardia papel fundamental, embora Patrick Geary [2005] evidencie que há um impulso para expressões cristãs na narrativa histórica que repercutem em uma constante representação dual entre bem e mal, sagrado e profano, bárbaro e civilizado, retira o homem do centro da narrativa para impor as vontades divinas, permitindo que a percepção do tempo na Antiguidade e Idade Média fossem tidas como cíclica e imutável, isto é, uma história repetitiva que consistia na reprodução e universalização de todos os eventos até então narrados, “A história passava a ter um significado e um projeto, mas perdia o seu caráter secular: a história transformou-se numa teodiceia” [Carr apud Le Goff, 1990, p.41] pois, em geral as representações da vida material estavam associadas a moralidade e a luz das leituras e interpretações bíblicas, cuja narrativa encontra seu comparativo e a base das legitimações do discurso histórico cristão em construção nesse período.

A narrativa cristã em Agostinho
Santo Agostinho corrobora a ideia de que haveria três arquétipos da cristandade, dos quais, os homens deveriam se espelhar, sendo eles Noé, Jó e Daniel: “em Noé estão representados os bons governantes que regem e conduzem a igreja [...]; em Daniel estão representados todos os santos que vivem a continência; e em Job, todos os que vivem bem o casamento” [Agostinho, p.41], contudo, a figura de Daniel colocada em destaque como símbolo da humildade é justificada por Agostinho em sua crença de que os ensinamentos do evangelho de Daniel são importantes para compreender os eventos presentes sob a luz dos ensinamentos bíblicos e, tranquilizar aqueles que teriam sido afetados diretamente, a fim de não permitir que duvidassem da justiça divina, pois em apologia, ele acreditava que esta ira divina manifestava-se em âmbitos universais e não individuais, e que também poderia colaborar para a remissão dos pecados através da humildade e da provação da fé: “quem dera que apenas se admirassem e não blasfemassem também, quando Deus repreende o gênero humano e o censura com o flagelo do piedoso castigo, fazendo disciplina antes do juízo” [Agostinho, p.41]. Tais preocupações na formulação destes sermões podem construir indícios e evidências da vida cristã no século V e representar através de traços da intelectualidade e da moralidade cristã a materialidade da vida cotidiana e as apreensões e as inquietações da Igreja Católica deste período, edificadas a partir da narrativa do bispo de Hipona.

Nesse sentido, é preciso considerar que a memória e a identidade tornam-se elementos fundamentais às narrativas, pois evidenciam e comparam as realidades vivenciadas através dos antagonismos identitários que destacam as múltiplas expressões favoráveis ao sagrado e moderno em detrimento do profano e arcaico, isto é, como a narrativa se constrói a partir de sujeitos historicamente determinados através de experiências, tradições e da cultura de um determinado povo e, a observação e o contato com o outro assimila e transforma sua experiência de mundo. Contribuindo para evidenciar a influência hegeliana do processo dialético na construção das identidades do pensamento de Walter Benjamin.

Quanto à identidade, Friedrich Hegel afirmou que a convivência social está configurada a partir das perspectivas do ‘outro’, pois a percepção própria do indivíduo por si só nada tem a apresentar, seus valores e sua identidade não podem ser expressas sem um fator antagônico ou concordante, ao qual tende a afirmar ou negar as características identitárias do ‘outro’, caso venha este correspondê-lo favoravelmente ou não, isto é: “O Eu é o conteúdo da relação e a relação mesma; defronta um Outro e ao mesmo tempo o ultrapassa; e este Outro, para ele, é apenas ele próprio” [Hegel, 1992, p.119-120]. Assim, a identidade de um indivíduo jamais depende dele próprio, mas das relações e representações que esta partilha e apresenta de seus valores com outros indivíduos. Neste último caso, uma partilha efetiva de valoração pode vir a constituir a identidade de vários indivíduos sob a relação que detém acerca de uma mesma representatividade do objeto observado, colaborando na constituição de uma sociedade que será regulada e transformada a partir dos contatos que tiverem com outras sociedades. A estranheza, portanto, causa os desafetos e a compreensão negativa da representação individual, colaborando para que tais indivíduos estejam na constante busca por seus pares. Deste modo, o ‘outro’ exerce a função primária na constituição das identidades, pois como propõe Hegel o ‘outro’ no mais das vezes, é apenas o próprio indivíduo, isto é, buscam-se sempre aquelas qualidades que a ele próprio são perceptíveis, e esta busca pelo ‘outro’ recorre do intenso desejo de encontrar a si próprio:

A percepção, ao contrário, toma como universal o que para ela é o essente. Como a universalidade é seu princípio em geral, assim também são universais seus momentos, que nela se distinguem imediatamente: o Eu é um universal, e o objeto é um universal. [...] No emergir do princípio, ao mesmo tempo vieram-a-ser os dois momentos que em sua aparição [fenomenal] apenas ocorriam fora, a saber - um, o movimento do indicar; outro, o mesmo movimento, mas como algo simples: o primeiro, o perceber, o segundo o objeto. O objeto, conforme a essência, é o mesmo que o movimento: este é o desdobramento e a diferenciação dos momentos, enquanto o objeto é seu Ser-reunido-num-só. Para nós - ou em si -, o universal como princípio é a essência da percepção, e frente a essa abstração os dois momentos diferenciados - o percebente e o percebido - são o inessencial [Hegel, 1992, p.83].

Assim, o sentido da percepção torna aquilo que é observável em essência dos indivíduos analisados, contudo, a definição de uma categorização não é imutável, pois como Hegel pontua acima, o universal que constitui-se a partir dos discernimentos e das relações a que os indivíduos desenvolvem, é apenas uma categorização fenomenal que constitui-se a partir das experiências e, necessariamente está sujeita a novas ressignificações.

Ao referir-se a estas transformações identitárias deve-se considerar os impulsos ordenados pelas variações da memória e tradição. Embora Pierre Nora esteja na contramão dos eventos aqui propostos, por abordar as sociedades de memória apenas para decretar seu fim sob a independência dos países colonizados após o século XVIII, é possível propor uma discussão a partir de seu entendimento daquilo que representa uma sociedade de memória que, para ele constitui-se a partir da “conservação e a transmissão de valores, igreja ou escola, família ou Estado” [Nora, 1993, p.8]. Logo, a estruturação das sociedades anteriores a esse período, são para ele, aquelas que buscavam a transmissão de suas tradições através de núcleos ideológicos que representam os interesses das classes dominantes. A tradição germanista refere-se a esta metodologia como Tradionskern, em poucas palavras, isto denota o entendimento de que tais sociedades se relacionam e interagiam a partir das expressividades das tradições promulgadas por uma nobreza que compõe uma elite social. Contudo, Walter Goffart [2002] acredita que esta metodologia pode acarretar problemas de entendimento acerca das dinâmicas sociais na Primeira Idade Média, pois coloca em debate que a memória é uma construção social que não se mantém com a mesma perspectiva sobre um determinado evento por longos períodos sem recorrer a métodos artificiais de preservação, e em suas palavras, “A memória raramente é transmitida por mais de três gerações, a menos que seja renovada por escritos ou santuários e rituais.” [Goffart, 2002, p.22]. Deixando claro que a memória, embora, precise de um referencial que a torne convincente, é também necessário atualizá-la constantemente, pois, sua expressividade e alcance detêm pouca amplitude. Baseando-se na mesma perspectiva de Goffart, Walter Benjamin acredita que a narrativa através da memória assume uma materialidade da tradição. Deste modo, a memória é um consenso ou tentativa de tornar-se consenso das transmissões de valores e moralidades das sociedades por meio da escrita e da narrativa de modo a torná-la imemorável.

Patrick Geary [2005] afirma ter ocorrido uma aderência das identificações cristãs e romanas na Primeira Idade Média em decorrência da maleabilidade de suas identidades, visto que, para ele, os cristãos compartilhavam um mesmo princípio de constitucionalidade, tal como os romanos; isto é, “Em poucas palavras [...] os constitucionais, [estavam] baseados em leis e na lealdade e criados por um processo histórico” [Geary, 2005, p.59] Evidenciando assim a existência de diretrizes identitárias entre cristãos e romanos, que se comportavam de modo similar, pois ambos atuavam sob um código de leis que permite a assimilação de qualquer indivíduo para seu meio, sem distinções étnicas, como nas palavras do apóstolo Paulo: “Nisto não há judeus nem grego: não há servo nem livre: não há macho nem fêmea; portanto todos vós sois um em Cristo Jesus [Gl 3,28]. O povo de Deus, portanto, une-se sem distinções.” [Geary, 2005, p.71, grifo nosso]. Ao afirmar que não haveriam distinções entre os povos unidos pela doutrina cristã, o apóstolo foi profundamente utilizado pela Igreja para apoiar a cidadania romana, negligência todo aparato ideológico, cultural e identitário étnico na tentativa de apresentar que os valores cristãos poderiam e deveriam ser universalizados. Portanto, ao relacionar isto as instituições imperiais, estas promoviam o ideário de que, o respeito a cidadania e a constitucionalidade estaria acima de qualquer expressão e desejo particular, local ou regional. Deste modo, a Igreja Católica utiliza das premissas apresentadas acima, para integrar parte da identidade romana e, que torna tão compreensível a aflição de tantos clérigos pela ‘destruição de um mundo cristão e civilizado’

Agostinho de Hipona teve imprescindível autoridade como reformulador das identidades assumidas pela cristandade e pela Igreja após o século V, pois as transformações ocasionadas pelas migrações dos povos bárbaros contribuíram para a desagregação identitária entre cristãos e romanos, buscando delimitá-los como incompatíveis e não mais como equivalentes. Evidenciando uma narrativa que impõe uma constante perspectiva de dualidade opositora, entre bárbaros e cristãos, entre santos e pecadores, entre sagrado e profano, entre o mundo e o reino dos céus:

Admiras-te porque o mundo se arruína? Admiras-te antes porque o mundo envelheceu. Também o homem nasce, cresce e envelhece. Muitos são os males na velhice: a tosse, a lentidão, a falta de vista, o mal-estar, o cansaço. Envelhece o homem e fica cheio de doenças, envelhece o mundo e fica cheio de sofrimentos [Agostinho, 2013, p.78].

Agostinho permite o apreço de uma representação de mundo dissociado do reino celeste e, portanto, perecível, assim manter-se em associação a defesa da identidade romana, poderia ser examinada como orgulho e soberba do homem perante as vontades divinas. Pois, ao passo que ocorre uma sistemática queda dos padrões de vida no Ocidente [Mendes, 1996], indicaria também àquilo que ele representa ser a ‘velhice’ de seu mundo, isto é, para o referido autor, sua época era a de um mundo pré-apocaliptico que aguardava o momento de redenção para os justos e a condenação para os infiéis, sendo os seguidores de Deus provados pelas agruras do tempo e da vida humana, assim como Jô teria sido submetido a suportar chagas e maldições:

Quando ouvimos no livro do santo Jó que, tendo perdido os seus bens, seus filhos e que mesmo o seu corpo, a única coisa que lhe restava, pôde salvar, posto que foi atingido por uma chaga terrível da cabeça aos pés, permanecia na imundície, apodrecendo em ferida, a escorrer pus, coberto de vermes, torturado pelo terrível suplício das dores; se nos dissessem que a cidade inteira estava assim, sem nada de são, numa chaga horrenda, e que os seus homens eram consumidos pelos vermes em vida, como se estivessem mortos, não era isto pior que aquela guerra? Penso que é mais fácil sofrer no corpo o golpe da espada do que os vermes, mais suportável escorrer o sangue das feridas do que o pus da putrefação [Agostinho, 2016, p.45].

Assim, as tentações de seu presente em comparatividade com as privações de Jó poderiam ser consideradas mínimas e representavam dois pontos fundamentais de seu discurso, o primeiro que evidencia a piedade do Criador e em paralelo a isto, corroborava com o imaginário de que as manifestações da ira divina mantinham-se na pluralidade, sem considerar distinções entre os homens, portanto, os sofrimentos infligidos pelas migrações germânicas não seriam vergonha alguma para aqueles que sofreram diretamente os impactos decorrentes delas, mas sim poderia compor um repertório de explicações e argumentos que considerava a morte como livramento das penúrias sofridas pela carne e que aproximava o homem de Deus.

Neste âmbito, observado um processo histórico que privilegia rupturas e descontinuidades como o período da Primeira Idade Média, é possível caracterizar as implicações das narrativas e seus efeitos na materialidade e no cotidiano das identidades, grupos e comunidades inseridas nesse processo, tal como Walter Benjamin propõe.

Referências bibliográficas
Geraldo Rosolen Junior é mestrando em História pela Universidade Federal de São Paulo com bolsa da CAPES; é pesquisador do Laboratório de Estudos Medievais (LEME/UNIFESP) e também do Núcleo de Estudos Bizantinos (NEB/UNIFESP).

AGOSTINHO, Santo. O "De excídio Vrbis" e outros sermões sobre a queda de Roma. Trad. Carlota Miranda Urbano. 3ed. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013.
ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. Trad.Mauro W. Barbosa. 8ed. São Paulo: Perspectiva, 2016.
BENJAMIN, Walter. “O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” In: Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história cultura. 3ed. Trad.: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987, vol.1.
GEARY, Patrick. O mito das nações: a invenção do nacionalismo. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2005.
GOFFART, Walter. "Does the distant past impinge on the invasion Age Germans?". In: GILLET, Andrew (ed.). On Barbarian Identity: Critical Approaches to Ethnicity in the Early Middle Ages. Turnhout: Brepolis Publishers, 2002.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito: Parte 1. 2ed. Trad. Paulo Menezes. Petrópolis: Vozes, 1992.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n.10, dez. 1993, p.07-28.
MENDES, Norma Musco. Imperadores e Senadores no Baixo Império. Phoinix, vol.2, 1996, p.259-274.
SKINNER, Quentin. Visões da política: Sobre os métodos históricos. Algués: DIFEL, 2002.

12 comentários:

  1. Boa tarde Geraldo,
    Em seu texto, você afirma que as migrações de povos bárbaros contribuíram para a desagregação identitária entre cristãos e romanos, buscando delimitá-los como incompatíveis e não mais como equivalentes. Entretanto, no século V, com o cristianismo sendo a religião oficial do Império Romano, e tendo o império uma população heterogênea desde os séculos da expansão territorial, não seria possível afirmar que o cristianismo se apresentava como uma parte da construção da identidade romana, ao invés de ser incompatível com esta?

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    1. Boa tarde prof. Renato.

      Eu tenho observado que após o saque de Roma de 410 há uma importante transformação da narrativa cristã, da qual acredito que Agostinho tenha sido o principal agente dessa transformação, em seus sermões sobre a queda de Roma, Agostinho nos apresenta a possibilidade do Império Romano (ao menos no Ocidente) deixar de existir, pois não sendo divino, também não poderia ser eterno, assim como outros impérios também ascenderam e caíram antes dele, nesse ponto ficam nítidas as associações com o capítulo 2 do Evangelho de Daniel, aonde o apostolo revela uma profecia da ascensão e queda de quatro impérios. Contudo, ao abordar que a cidade de Roma não havia sido destruída como a cidade de Sodoma, ele nos apresenta que, embora o Império pudesse ser destruído, o ideal de civilização continuaria a existir independente dele, pois a Igreja e a cristandade sustentariam esse ideal, e seriam seu novo alicerce.

      De fato, ainda que o cristianismo tenha integrado parte da Romanitas nesse período, Agostinho pareceu temer que a queda do Império, também fizesse ruir a Igreja, portanto, a distinção entre o celestial e o mundano, o divino e o humano precisaram ser compreendidos por ele como dimensões diferentes, mas também opostas. Se analisarmos ainda outras produções do Bispo de Hipona, conseguimos observar que ele também havia sido um crítico de outras esferas da identidade romana, como por exemplo na carta LXVI de 402, Agostinho nos apresenta uma predileção de que seus escritos, inclusive as cartas, deveriam ser traduzidos para a língua púnica para que os romanos-africanos que não sabiam ler ou falar o latim, também pudessem compreender os debates religiosos, para que a própria população pudesse conhecer de maneira consciente a fé que professavam, o que para ele, também auxiliaria nos ofícios episcopais e reduziriam as comunidades heréticas, já que para o bispo de Hipona os hereges não poderiam manipular seus fieis.

      Além dessa, existem pelo menos outras três cartas onde Agostinho defende e nos apresenta a importância da língua púnica para o bom desempenho de suas funções, portanto, é preciso considerar que ele acreditava que a cristandade não deveria estar limitada por padrões civilizatórios e linguísticos definidos pelo Império.

      Um abraço.
      Geraldo Rosolen Junior

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  2. Olá, Geraldo Rosolen Junior! Boa tarde! Parabéns pelo texto!
    Pude aprender bastante, e senti a necessidade nas minhas leituras dentro da história de incorporar mais contribuições da filosofia, como tem no seu texto!
    Aminha pergunta talvez fuja ao texto, mais apenas se puder responder e me auxiliar ficarei grato.
    Qual a contribuição que tens percebido ao trazer esses diálogos com a filosofia para se pensar a história? Em alguma medida auxiliaria a sanar algumas dificuldades historiográficas, e nos livrar de incumbirmos em erros?
    Mais uma vez o parabenizo pelo texto!
    Respeitosamente um abraço!
    Ayrton Matheus da Silva Nascimento.

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    1. Boa tarde Ayrton.
      Fico muito grato pelos elogios, e fico feliz que tenha gostado do texto.
      Sua pergunta é bastante complexa, e acredito que não fuja muito da proposta do texto, tentarei te responder com exemplos do texto.

      Certamente os diálogos com a Filosofia me ajudaram a examinar de modo crítico, grande parte dos conceitos que envolvem minha pesquisa, tais como a identidade e narrativa que apresento nesse texto, acredito que nesse sentido pensar a narrativa e a identidade, colaboraram para que eu pudesse extrapolar a análise do texto escrito e, observar as tradições historiográficas e/ou teológicas que giraram em torno da produção de um livro, de sermões ou até mesmo de cartas, através dos padrões narrativos que podem ser encontrados.

      Nesse texto, eu apenas consigo falar que houve uma transformação da identidade cristã na Primeira Idade Média por observar que, ainda que a crítica a romanidade por escritores não-cristãos já viessem sendo endossadas desde Tácito até Amiano Marcelino, não encontrei nenhuma correspondência similar para os escritores cristãos até Agostinho, que é onde observo essa transformação na escrita e também na identidade cristã, pois houve também a partir dele uma nova compreensão acerca da contribuição dos dito ‘bárbaros’ ao ideal de civilização.

      Nesses sermões sobre a queda de Roma, Agostinho elege Alarico rei dos visigodos como um rei benevolente, caridoso, mas principalmente como um bom cristão, isso porque ao lidar com a oposição pagã que afirmava que Roma só havia caído porque havia proibido seus cultos ancestrais, o bispo de Hipona considerou isso inaceitável e preferiu demonstrar como Alarico e seus visigodos eram bons cristãos, pois além de terem destruído os templos pagãos por onde passaram (especialmente na região da atual Grécia) também haviam colaborado no desmantelamento dos cultos pagãos por isso, ele ainda observa que o rei Radagásio também havia tentado os mesmos feitos de Alarico (saquear Roma), mas falhou porque Deus jamais permitiria que um pagão triunfasse sobre os fieis cristãos.

      Ao fazer isso, Agostinho abriu um importante precedente e que permitiu se desvencilhar de uma escrita apocalíptica, Salviano por exemplo, foi um importante discípulo dessa tendência, e chegou inclusive a avaliar os ‘bárbaros’ como moralmente superiores aos romanos. Entretanto, mesmo para autores que demonstraram grande desprezo os bárbaros, é o caso, por exemplo de Idácio de Aquae Flaviae que demonstrou que Alarico havia refugiado os cristãos nas igrejas para que não sofressem com o saque, e também Victor de Vita que ainda que fosse um exímio crítico dos vândalos, considerou que o saque de Roma de 455 (pelos vândalos) também havia acontecido graças aos pecados dos romanos, que conduziram a punição divina para orientar a fé dos católicos.

      Desse modo, eu acredito que a Filosofia nos ensina a olhar em dimensões que muitas vezes passam despercebidas aos historiadores, e também nos ajudam a sair dos escopos tradicionais da pesquisa histórica, seja qual for a sua área de pesquisa e estudos. Como por exemplo, o que tenho tentado demonstrar que, uma narrativa se bem avaliada, pode sim nos apresentar múltiplos aspectos identitários, seja do autor, de quem eles descrevem ou das tradições que se formam a partir delas.

      Recomendo dar uma olhada nos textos de Walter Pohl são bem contemporâneos e também pode ter servir como base. Desculpe pela extensão da resposta, mas como disse sua pergunta é bastante complexa, muito obrigado por sua atenção.

      Um abraço.
      Geraldo Rosolen Junior

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  3. Boa tarde, excelente texto, que despertou uma inquietação acera da natureza diga-se social do cristianismo antigo, com base na noção do que é narrativa história segundo Benjamim e Arendt, uma conjunção entre experiência/memória e crítica baseada nas circunstâncias históricas, ou dinâmicas temporais, o texto discorre acerca das transformações que o status da cristandade sofreu com o declínio do núcleo político e cultural que fora o império romano do ocidente, nesse sentido, até que ponto é verdadeira a tese do maior apelo da religião cristã entre as camadas mais pobres e menos instruídas da antiguidade? Essa teoria tem fundamento histórico, documental, ou é mais um produto da "propaganda", que buscava evidenciar a diferença entre cristãos e pagãos, a opulência decadente contra a moral ascética.
    Pâmella Holanda Marra.

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    1. Boa noite Pâmella.
      Fico muito feliz que tenha gostado do texto, muito obrigado por suas considerações, acredito que você tenha resumido o texto de forma admirável. Seus questionamentos envolvem múltiplos aspectos, que podem ter realidades distintas conforme a regiões do Império e o período histórico pesquisado. Assim, para responder seus questionamentos manterei o foco entre os séculos IV e V da África Romana.

      Conforme o prof. Renato Viana Boy havia pontuado em pergunta anterior, durante esse período o cristianismo foi reconhecido como uma religião oficial do Império Romano, isso significava que a religião cristã havia integrado parte da Romanitas, definido e defendido, ao menos por parte da aristocracia romana, como um requisito para ser reconhecido como civilizado e, portanto, a conversão havia se tornado uma necessidade civilizatória, fazendo com que os cultos ancestrais fossem tidos como retrógrados, Patrick Geary em ‘O mito das nações’ de 2005, e mais recentemente Yitzhak Hen no capitulo ‘Compelling and intense: The Christian transformation of Romanness’ de 2018, abordam com maestria esse debate.

      Isso, de certo modo, também significou que a Igreja pode se institucionalizar à margem da administração romana, ganhando autonomia para muitas de suas esferas, ficando responsáveis inclusive pela coleta de impostos de suas comunidades, e a dispensa dos serviços públicos obrigatórios, conforme podemos observar nos decretos publicados em 319 no Codex Theodosianus (CTh 16.1.2, 319; CTh 16.2.5, 319), isso além de permitir um maior controle dos funcionários da Igreja, certamente colaborou para a expansão da cristianização sobre as camadas subalternas da sociedade romana, ao mesmo tempo que dificultou a influência, a autoridade e o enriquecimento de pagãos, somado a isso, um decreto de 407 permitia que toda propriedade de cultos pagãos fossem apropriadas pelos bispos da Igreja (CTh, 16.10.19, 407), e acabaram limitando a presença dessas comunidades não-cristãs a grupos pequenos na África Romana.

      Deste modo, como as camadas subalternas tem pouca representatividade no quesito de produção de textos que sobreviveram para nós, o Codex Theodosianus talvez seja, a principal fonte de pesquisa para compreender como o cotidiano popular havia sido regulamentado pelo Império e pela Igreja.

      Embora não possamos desconsiderar o caráter propagandístico de diversas obras clericais, que tinham como objetivo orientar a opinião pública sobre outras comunidades religiosas ou sobre os povos que ingressaram no Império Romano a partir do século V. Acredito que também seria correto considerar que a religião cristã e a Igreja tinham um apelo popular mais amplo que o próprio Império, é o caso como já mencionado em resposta anterior, do requisito da fluência na língua púnica exigida por Agostinho para eleger outros clérigos ao cargo de bispo nas províncias africanas. Outro fator que talvez, também possa ter colaborado como recurso para que a religião cristã fosse tida como uma instituição dedicada as camadas subalternas, era o papel de amparo que concedia aos pobres, e principalmente, porque era através dela que essa população poderia recorrer aos Tribunais Eclesiásticos, solicitando aos bispos católicos a arbitragem em conflitos judiciais do cotidiano, que não envolviam apenas questões doutrinárias ou religiosas, enquanto que os Tribunais Romanos eram mais limitados aos aristocratas e aos ofícios do Estado, os Tribunais Eclesiásticos atendiam e advogavam em favor de qualquer indivíduo cristão, e talvez, em partes, tenha sido a compreensão de toda essa estrutura administrativa e institucional, que deu segurança para Agostinho acreditar que a civilização poderia sobreviver mesmo se o Império Romano no Ocidente deixasse de existir. Sobre esse aspecto da História Jurídica recomendo a autora Caroline Humfress que é uma das autoridades no assunto.

      Obrigado pela atenção concedida, e também pela reflexão que você me proporcionou, espero que eu tenha conseguido responder todos seus questionamentos.

      Um abraço.
      Geraldo Rosolen Junior

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  4. Olá Geraldo, tudo bem?

    Gostei muito do texto; a parte teórica está excelente. Fica minha pergunta: como você aplicaria esse escopo para autores da época com posições diferentes de Agostinho (Sinésio de Cirene, por exemplo)?

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    1. Boa noite prof. Renan.
      Muito obrigado, suas considerações são muito importantes, fico feliz que tenha gostado do texto. Não sei se consegui compreender a sua pergunta, se no caso, o escopo seria a aplicação da narrativa do Walter Benjamin que uso para avaliar essa fonte.

      Eu acredito que o texto usado do Walter Benjamin me rendeu um grande amadurecimento, em relação a análise dos textos como discursos narrativos que não se atém apenas a cultura escrita e ao seu produto, ter compreendido a narrativa de Walter Benjamin me ajudou a pensar como o autores medievais estabeleciam os diálogos entre os diferentes níveis da sociedade, como o autor se projeta e vê no seu tempo e espaço, e como isso pode nos apresentar múltiplas identidades presentes na narrativa, seja do autor, daquilo que ele descreve ou das tradições que surgem a partir das propostas apresentadas, fosse para seu debate ou para sua incorporação.

      Desse modo, eu acredito que é possível aplicar essa dimensão sobre as narrativas e as identidades expostas a partir delas, cujo limite não seria definido pela oposição ao pensamento de Agostinho, mas sim na possibilidade que aquele escrito assume em face dos discursos práticos que ele apresenta, como exemplo das cartas, dos sermões, de obras com objetivo de nortear a opinião pública, como um debate religioso ou social, e em oposição, talvez fosse pouco prático aplicar essa dimensão para análise das crônicas medievais, dos laterculi, e textos que são muito mais um exercício de registro historiográfico e da memória, do que um texto que assume um discurso efetivo, acredito que esse seria o limite da aplicação do texto do Walter Benjamin.

      Espero ter conseguido responder seu questionamento.

      Um abraço.
      Geraldo Rosolen Junior

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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    3. Agostinho viveu uma fase de doutrinas contraditórias, que perdurou até meados do século V. As disputas dogmáticas dentro da Igreja cristã permitem supor um cenário de alianças político-religiosas com os bispos regionais (ou discordâncias, dependendo do caso). Algo similar ao que ocorreu nos cristianismos originários, para tentar ilustrar melhor.

      Diante disso, Agostinho dispunha de uma visão entre várias concorrentes. Apesar de ser reconhecido em época, é preciso considerar que parte da fama e do destaque vieram posteriormente, enquanto outras posições e pensadores ocuparam posições marginais nas discussões atuais - o que não implica uma posição marginal em época ou em esferas regionais. Essas questões são fundamentais para pensar as identidades naquele conturbado cenário e como elas foram consolidadas em memórias a posteriori.

      Cordialmente,

      Renan Birro

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    4. De fato, você havia tocado em um exemplo que me deixou um pouco inquieto (no bom sentido), por se tratar de um bispo das províncias Orientais, mas ainda não consegui examinar com profundidade obras dos clérigos orientais, e por isso não sei dizer até que ponto Agostinho conseguiu influenciar a narrativa cristã na Pars Orientalis, ou se houve algum outro clérigo dessa região que desenvolveu propostas similares.

      No entanto, ao avaliar algumas fontes das províncias Ocidentais, e certo que há aqueles como Paulo Orósio e Salviano que não apenas foram influenciados, mas também aprofundaram o debate de Agostinho, Salviano talvez seja o exemplo mais ao extremo, pois considerou que não apenas era necessário se desvencilhar da identidade romana, por considera-la imoral, como também da propôs que a própria identidade religiosa dos ‘católicos’ havia sido corrompida, e por isso, considerou que os hereges arianos como godos e vândalos eram moralmente superiores aos romanos, e aos católicos em sua prática cotidiana da cristandade. Entretanto, como havia apresentado em pergunta anterior, mesmo aqueles que demonstravam desprezo pelos bárbaros, e tinham visões escatológicas em relação ao estabelecimento de seus Reinos nos territórios imperiais como Idácio de Aquae Flaviae, e também como Victor de Vita que descreveu os vândalos como bárbaros terríveis e demoníacos, mesmos estes escritores parecem compartilhar do pensamento de Agostinho de que Deus havia enviado esses povos para provar a fé dos justos, e para condenar os ímpios, como Idácio ao citar a benevolência de Alarico, e Victor ao creditar aos romanos a culpa pelo saque de Roma de 455.

      Dessa forma acredito que as propostas de Agostinho acabaram incidindo em um aspecto mais amplo de transformação da narrativa e das identidades cristãs, ao menos em parte do Ocidente. Mas se pudesse também recomendaria cautela, pois cada fonte deve ser examinada em seu próprio contexto autoral e de produção.

      Um abraço.
      Geraldo Rosolen Junior

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