A RELIGIÃO ANALISADA POR MEIO
DO MEDIEVALISM: A NARRATIVA DE JOANA
D’ARC PELOS ARAUTOS DO EVANGELHO
Em nossa reflexão
em 2019, analisamos a Associação Religiosa dos Arautos do Evangelho [Amaral;
Rangel, 2019]. Na ocasião, o objetivo do trabalho foi, por intermédio da teoria
do medievalism, compreender a
utilização, realizada por esse grupo, da hagiografia medieval de Raimundo de
Penãfort (1175-1275). Nessa análise, demonstramos a existência de um propósito
de autolegitimação ao mesmo tempo em que se forjava uma idade média
“encantada”, alinhada aos objetivos e aos compromissos missionários da
Associação, bem como de seu fundador Mons. João Clá.
Para a discussão
encetada agora, embora a análise permaneça sobre o mesmo grupo religioso,
aprofundaremos a discussão mencionada anteriormente, e, ao mesmo tempo,
demonstraremos, ainda de forma incipiente, a viabilidade de se aplicar as
teorias do medievalism à religião
(compreendida, aqui, em sua dimensão teológico-dogmática e não tanto prática).
Tal propósito aparece em razão do pouquíssimo número de trabalhos sobre essa
relação, apesar do caráter codisciplinar do medievalism
[Hsy, 2017]. Isso se de deve a vários
motivos, contudo, o principal diz respeito à temporalização. Desde o
historicismo, a disciplina história estabeleceu uma epistemologia para lidar
com a temporalidade histórica, a qual, tende a acentuar a distinção entre os
períodos, ao passo que a religião possui uma relação sincrônica com o tempo,
que, segundo Richard Utz, seria contratemporal. [Utz, 2015]
Portanto, para
Utz, o problema reside nas diferentes formas de se relacionar com o tempo e, ao
mesmo tempo, nas diferentes formas de conceitualizar a relação entre passado e
presente e na própria relação com o mundo. Assim, ao se considerar o tempo como
uma categoria conscientemente temporalizadora, estabeleceu-se uma premissa
diacrônica no campo das humanidades, sobretudo, no campo da história. Essa
categoria passou a orientar a relação dos historiadores com o passado,
sobretudo, a partir do advento da história como disciplina acadêmica no século
XIX.
Para Utz, como
uma espécie de subproduto do processo acelerado da temporalização e da
institucionalização da disciplina história, foi necessário o estabelecimento de
diferentes formas de ver o passado, um exemplo disso, foi a constituição de um
limite epistemológico, assim, dever-se-ia considerar os limites intransponíveis
de uma história não contínua. Segundo esse autor, a teologia teria sofrido
pressões no sentido de estabelecer uma historicização e, em função disso, teria
estabelecido as cátedras de história eclesiástica, as quais, apesar de seus
contornos acadêmicos concebiam a religião e a sua temporalidade de formas
completamente opostas ao historicismo. Para corroborar a sua argumentação, Utz
cita o exemplo abaixo.
“ A majority of Christians
maintain that the person of Christ is spiritually present in the Eucharist.
Roman Catholic Christians affirm what they term ‘real presence’ of the body and
blood of Christ as resulting from a change of the elements of bread and wine.
Lutherans agree with them in a real eating and drinking of the body and blood
of Christ except that they define it as happening by sacramental union: ‘in,
with, and under the forms’ of bread and wine. Methodists and Anglicans tend to
avoid the controversy surrounding the question by relegating Christ’s presence
to the realm of religion’s mystery”. [Utz, 2015]
Apesar das
nuances entre as denominações, Utz insiste em alguns aspectos capazes de, ao
que tudo indica, excluir o campo da religião dos estudos sobre o medievalism. Trata-se do desejo comum em
estabelecer duas pontes não contínuas no tempo. No centro está o reconhecimento
da celebração da Eucaristia como uma memória da santa ceia para demonstrar a
natureza sempre eterna de Cristo, ajudando aos crentes estabelecer uma união à
divindade. Para o autor, trata-se de seguir Lc 22,19. Assim, por intermédio de
formas litúrgicas e do próprio ritual da reconstituição, culmina-se na
consecução de uma suspensão temporária da história humana, do próprio tempo
humano, por meio da Eucaristia. Em seguida, ele sustenta que o caráter
sempiterno da religião seria o principal motivo para a não inclusão da religião
nos estudos do medievalism.
“I believe, a good answer to the question why scholars of medievalism
studies find it difficult engage in a critical (and ‘critical’ has been
synonymous with ‘historicizing’) discussion of religion. (…) Religion, however,
because it resists historicity’s epistemological predominance, may remain too
difficult a topic for most academic scholars, which is why they responded to
this foundational epistemological aporia in variety of ways”. [Utz, 2015]
Dessa forma, a
questão diz respeito à forma como a religião coloca-se fora do campo
epistemológico da historicidade e, de certa forma, da própria história. Após
expor o problema da temporalização, esse autor apresenta diferentes autores
cujos trabalhas, grosso modo,
corroborariam a inviabilidade de pensar a religião por meio da teoria do medievalism.
Antes de
voltarmo-nos à análise sobre os Arautos do Evangelho, consideramos importante voltar
à contribuição de Utz, especificamente, a sua conclusão, na qual apresenta a
sua opinião. “To me, this example leaves no doubt that scholars in medievalism
studies have an ethical obligation to investigate and historicize religion and
theology, at leaves in all its temporal manifestations” [Utz, 2015, p. 18-19]. Outrossim, por mais desafiador que seja, chegou o
momento de encarar o problema de Utz, embora o façamos, neste trabalho, de
forma incipiente.
Com base na
narrativa, escrita em forma de artigo online, de Mons. João Clá sobre Joana
D’Arc publicada no site da Associação Arautos do Evangelho [Dias, 2020]
pretendemos demonstrar como o agir da Providência, bem como as virtudes
da própria personagem, estão circunscritas a um “tempo” que não é o da
religião, mas sim o da própria história. A relação por meio da qual o autor do
artigo vincula-se à idade média, seria, é o que sustentamos, uma criação/apropriação
de uma idade média idealizada capaz de legitimar, por conseguinte, a
Associação.
“Surpreendente e variadas são as vias da
Providência!”
Com a frase
acima, Mons. João Clá atribui o título de seu artigo sobre Joana D’Arc. Um
artigo relativamente pequeno, mas que, ao final, apresenta considerações de
Bento XVI, realizadas em 2011, sobre a santa, demonstrando a sua relação com a
política e como seu exemplo serve ao presente. Pelo título, podemos supor qual
mensagem esperar, a saber: Deus age das mais diversas maneiras, ainda que não a
compreendamos ou que, no presente, sejamos condenados. Finalmente, esta é a
síntese de Joana D’Arc, a santa que em seu tempo foi condenada pela própria
Igreja, mas que, séculos depois, teve seus méritos e sua santidade reconhecida.
Em outubro do ano
passado, a Associação Arautos do Evangelho foi alvo de inúmeras reportagens que
os acusavam de abusos psicológico, sexual, dentre outras acusações [Globo,
2019] e Oliveira [2019]. Nesse sentido, não é de surpreender que a
imagem e o exemplo, aqui entendido em
sua acepção medieval, de Joana D’Arc, tenha sido trazido à tona pela
Associação.
Novamente, os
Arautos recorrem ao tempo medieval a fim de plasmarem sua imagem ao período, obtendo
legitimidade e, ao fim, corroborando sua atuação no mundo, ainda que sob
acusações e críticas. Contudo, para além desses elementos, podemos notar a
própria construção da idade média operada na narrativa e instrumentalizada, em
duas temporalidades, na idade média, e no presente, e ainda na própria
história.
Já no começo do
texto, Mons. João Clá apresenta alguns topos
dos santos medievais como a virgindade, a humildade, a precocidade intelectual,
sobretudo, a forma extemporânea em que os santos são, pela Providência,
apresentados às suas missões terrenas, entre outros. Todavia, além disso, ele
faz questão de demarcar o período em que a vida e os feitos da santa ocorrem,
isto é: a idade média. Neste momento, o autor afirma que a Inglaterra dominava
o território francês e que Joana foi a escolhida por Deus para libertar a
França. Sendo, inclusive, conduzida por vozes do Espírito, a “donzela”, a
“imaculada” e a “santa” Joana apresenta-se ao rei Carlos VII a fim de revelá-lo
a visão e a missão que Deus lhe havia conferido. Esse, sem acreditar na missão
entregue à jovem esconde-se em meio aos seus súditos, disfarçando-se de nobre e
colocando uma outra pessoa em seu trono para confundir Joana. Contudo,
confirmando sua eleição, Joana dirige-se imediatamente ao rei, embora não o
tivesse conhecido preteritamente.
Até este momento
da narrativa, duas interpolações importantes são feitas pelo autor do artigo.
Na primeira ele “contextualiza” a França daquele período, ou seja, explica as
características daquele país à época. Sendo assim, afirma que, naquele tempo, a França
“feudal”, “do heroísmo e da cavalheirosidade” encontrava-se sob domínio inglês.
Mais à frente, ao comentar o episódio do reconhecimento do rei por parte da
santa, ele explica que não havia imprensa ou televisão naquela época e, por
isso, Joana não teria como saber quem era o rei.
Ora, tanto a
primeira, quanto a segunda interferência do autor, demonstram, por um lado, a
concepção que este tem sobre a idade média, especialmente a França, bem como a
relação com o presente. Aqui, o presente é acionado não apenas como forma de
facilitar a compreensão por parte do leitor, mas também como operação
narrativa, isto é, o passado está sendo lido pelo olhar do presente e é para
este que aquele interessa, por meio do recurso à exemplaridade, tanto da santa,
quanto do período que o autor tem por “verdadeiro”.
Ao dar
continuidade ao texto, o autor apresenta os feitos da santa, as suas vitórias
até o momento de sua derrota e de sua captura. Embora se defenda como uma leoa
contra as acusações, o bispo que a condena, supostamente, havia sido expulso de
sua diocese na França porque apoiava os “invasores”. Dessa maneira, Joana é
condenada como “vil feiticeira” e, assim, conduzida à fogueira. Neste momento,
aproxima-se o auge do relato:
“Deus, que
estivera tão presente em todos os combates dela, agora fazia-se ausente. Na
manhã da morte, vestem-na com uma túnica infamante e a conduzem numa carreta,
de pé, com mãos amarradas às costas, como se fosse malfeitora, em direção ao
local do suplício. O povo enche as vias por onde ela passa, e no caminho era
lido a sentença, toda feita de infames e falsas acusações. Continuando seu
trajeto, a carreta chega à praça onde está armada a fogueira. Santa Joana d’Arc
desce e caminha em sua direção. Pode-se bem imaginar a perplexidade que
invafia(sic) sua alma: “Mas, então, aquelas vozes não eram verdadeiras? Aquelas
vozes teriam mentido? Meu Deus, será que minha vida não foi senão um engano? É
a Inquisição que me condena! É um tribunal eclesiástico, dirigido por um Bispo,
composto por teólogos e por homens de lei… Será que eu não me enganei, ó meu
Deus?!”” [Dias, 2020]
Joana é queimada
e na narrativa enfatiza-se toda dor e suplício que ela sofreu. Contudo,
enquanto o fogo consumia seu corpo, a santa, enquanto morre, pronunciava: “As
vozes não mentiram, as vozes não mentiram”. Aqui, mais uma interpolação do
autor que faz questão de explicar o sentido das últimas palavras de Joana, qual
seja: embora houvesse um mistério naquilo tudo, Joana não estava mentindo
porque cumprira a vontade de Deus. Por fim, Mons. João Clá afirma que após o
“sacrífico” da santa, o exército inglês não conseguiu resistir ao francês e que
120 anos depois, a última cidade, Calais, sucumbiu à reconquista francesa.
Desta maneira, ele encerra dizendo: “O nome de Santa Joana d’Arc permanecerá
como uma saga, um mito, um poema, até o fim do mundo: a virgem heroica e débil,
que expulsou os ingleses do doce Reino da França e realizou, assim, a vontade
de Nossa Senhora, Rainha do Céu e da terra”. [Dias, 2020]
Observemos a
maneira que se refere ao reino de França (“doce”). Este, ao contrário da
Inglaterra, não se converteu a “heresia” protestante [Dias, 2020] e,
durante a época feudal, como fora dito, figurava como espaço do heroísmo e da
cavalheirosidade”.
Através da
narrativa sobre Joana D’Arc, o fundador da Associação não apenas responde às
acusações e às desconfianças que pairam sobre eles, isto é, ainda que
desconfiem da missão deles, a Providência tem várias vias que podem
surpreender. Mas também apresenta sua própria compreensão sobre o período
medieval. Uma época de heroísmo, cavalheirismo, milagres, ação direta da
Providência, a qual, supostamente, estaria fora do tempo. No entanto, é precisamente
por meio desta elaboração sobre a idade média feita por João Clá, que a
Providência sai da eternidade e entra para a história na medida em que sua ação
ocorre em um tempo e espaço circunscrito e, por isso, historicizável.
Nesse sentido, o medievalism aparece como ferramenta
profícua para análise dessas apropriações, construções e (re)elaborações que a
idade média é alvo. Inclusive, no que se refere à religião. Finalmente, como
demonstramos, esta não se descola de um tempo/espaço a ser apresentada e
representada. Este tempo, ao ser descrito como “medieval” aparece carregado de
sentidos, significados e características que não existem por si só, mas são
produto de uma escrita, de uma interpretação sobre a idade média a qual ocorre
no tempo e no espaço histórico.
Apesar de
consideramos pertinentes as questões sobre a temporalização, consideramos que
Utz está equivocado por apresentar aspectos dogmáticos e teológicos como dados
intrínsecos à religião. Além disso, é importante considerar que, grande parte
do que ele escreveu sobre a temporalização, é, na verdade uma reflexão da
própria idade média, notadamente, de santo Agostinho e de são Tomás de Aquino,
no que pesem as diferentes reflexões desses autores sobre o tempo e a própria
história, eles se preocuparam em demonstrar como Deus, que estaria na
Eternidade, e não no tempo humano, inscreveu-se na história humana por
intermédio de Jesus Cristo, ou seja, a Encarnação, representa, a inscrição da
Eternidade no tempo humano, portanto, na própria história, e os medievais
redigiram muito sobre isso.
A Encarnação não
deixa de ser um momento de suspensão do tempo e da história, não é ao acaso que
a Eucaristia propõe o mesmo. Entretanto, tudo isso é uma reflexão, em grande
parte medieval. Assim, o campo da religião seria, em última instância, um
terreno propício para se utilizar a teoria do medievalism, grosso modo, notamos que os autores, pelo menos as
referências, nessa discussão desconhecem vários aspectos da “religião
medieval”. Outrossim, a idade média foi a responsável por lidar com uma série
de que chamaríamos de multitemporalidade, inclusive, sobre a própria suspensão
do tempo humano durante a Eucaristia, embora sejamos obrigados a deixar, pelas
limitações deste trabalho, a reflexão sobre a multitemporalidade para trabalhos
futuros. Mas , como conclusão,
sustentamos que, na verdade, as objeções relacionados por Utz acerca da forma
como o religioso relaciona-se com o tempo tem suas origens na reflexão medieval
acerca dele, portanto, em diversos aspectos do campo religioso, não
necessariamente, teríamos a necessidade, de forma explícita, de se vincular ao
medievo, a relação com a multitemporalidade já é per se, um aspecto que pode e
dever ser analisado por intermédio da teoria do medievalism.
Referências
Clinio de Oliveira Amaral é professor
associado de história medieval da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
Brasil, pesquisador do Linhas (Núcleos de estudos sobre narrativas e
medievalismos, cf. https://linhas-ufrrj.org/) e coordenador do LABEP (Laboratório
de estudos dos protestantismos).
João Guilherme
Lisbôa Rangel é mestre e doutorando pelo PPHR-UFRRJ, pesquisador do Linhas
(Núcleos de estudos sobre narrativas e medievalismos, cf.
https://linhas-ufrrj.org/) e do LABEP (Laboratório de estudos dos
protestantismos). O trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de
financiamento 001.
AMARAL, Clinio de
Oliveira; RANGEL, João Guilherme Lisbôa. A Idade Média encantada dos Arautos do
Evangelho analisada através do medievalism. In: ANDRÉ BUENO; DULCELI
ESTACHESKI; JOSÉ MARIA SOUSA NETO; RENAN MARQUES BIRRO. (Org.). Aprendendo
História: Ensino e Medievo. 1ed.União da Vitória: Edições Especiais Sobre
Ontens, 2019, v. 1, p. 11-18.
DIAS, João Clá.
Surpreendente e variadas são as vias da Providência. 2020. Disponível:
https://www.arautos.org/secoes/artigos/especiais/santa-joana-darc-a-virgem-heroica-143592
[internet]
Globo, 2019,
disponível em:
Fundador do
Arautos do Evangelho dá tapas em jovens em novo vídeo.
Disponível em:
https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2019/10/27/fundador-do-arautos-do-evangelho-da-tapas-em-jovens-em-novo-video.ghtml
[internet]
HSY, Jonathan. Co-disciplinarity. In: EMERY, Elizabeth and UTZ, Richard.
(eds.). Medievalism key critical terms. Woodbridge: Boydell & Brewer, 2017,
p.43-51.
OLIVEIRA, Thais Reis. Castigos,
exorcismos e denúncias: quem são os Arautos do Evangelho. 2019. Disponível:
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/castigos-exorcismos-e-denuncias-quem-sao-os-arautos-do-evangelho/
[internet]
UTZ, Richard. Medievalism studies and the subject of religion. Studies
in Medievalism. Cambridge: D.S. Brewer, n XXIV, 2015, p. 11-19.
Prezados,
ResponderExcluirSei que extrapola o estudo de vocês, mas seria possível pensar em uma análise à luz do medievalismo das práticas religiosas contemporâneas?
Renan Birro
Quais práticas exatamente? A Thamires D'Alcântra defendeu recentemente o mestrado em que trabalha com o Medievalismo, o título do trabalho é "Hagiografia como legitimação da santidade do apóstolo Valdemiro Santiago de Oliveira (1996-2000)"
ExcluirPrincipalmente para a análise de práticas religiosas mais subjetivas envolvendo o maravilhoso.
ExcluirRenan Birro
Depende das práticas, mas, em breve, será publicado um artigo meu com a professora Maria Eugência Bertarelli cuja temática é semelhante ao apresentado neste trabalho. Abaixo, cito um trecho do nosso artigo, ainda inédito, que pode fomentar o debate.
ResponderExcluir"Destacamos que muito da forma como a Igreja vê-se a si própria hoje, tem a ver com suas fundações medievais, e.g., missa, sacramental entre outros. A forma como a Igreja faz uso do peso da tradição, especificamente, da exegese bíblica, patrística e de outras formas, muitas das quais, medievais, de se autodefinir conscientemente como uma instituição medieval não pode ser desconsiderada nesta reflexão. Portanto, no caso da Igreja Católica e de um número considerável de denominações no campo dos protestantismos, a relação entre o uso do passado medieval e o presente como forma de legitimação e identidade são parte da liturgia dessas instituições. Além disso, não podemos negar que em diversos ritos litúrgicos, como, por exemplo, a Eucaristia, há intenção de fazer a intersecção entre as multitemporalidades, quer na idade média, quer na contemporaneidade." (Amaral; Bertarelli, prelo, 2020).
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ResponderExcluirComo trabalhar a história de Joana d'arc em sala de aula, de modo que não extrapole o olhar além de uma mulher que contrariou a Igreja ?
ResponderExcluirJESSICA MONTEIRO VIANA DE ANDRADE
Olá Jéssica. Obrigado pela pergunta.
ExcluirAcho que a questão da memória, por exemplo, é um tema excelente para se trabalhar. Joana, em sua época, foi considerada herege. Anos depois, santa. Pensar com os estudantes como se dá esse processo é algo muito bacana e pertinente.
Att.
João Lisbôa
O texto é muito interessante! Obrigada pela discussão!
ResponderExcluirFiquei com a impressão de que os elementos ditos religiosos historicizados na fonte, na verdade são aspectos da religiosidade. Nesse sentido, meu questionamento é: a religiosidade, enquanto interpretação e atitude informal frente à experiência religiosa, não seria mais "fácil" de ser historicizada e relacionada com o conceito de medievalism em comparação com a religião (corroborando com a perspectiva do Richard Utz)?
Karolina Santos da Rocha.
Prezada Karolina,
ExcluirA proposta do nosso texto, embora seja incipiente, é a de refutar a argumentação de Utz (2015) para que assim possamos utilizar a teoria do medievalism. Ela só pode ser aplicada às manifestações que, de forma deliberada, se apropriam do medievo e utilizam-no no presente. Para Utz, devido ao fato de que a religião não faz parte de uma categoria analítica diacrônica, mas sim sincrônica, ela não poderia ser usada por essa teoria.
Assim, Utz não considerou o fato de que a religião, apesar de sua relação sincrônica com o tempo, teria também uma relação diacrônica. E, no caso específico, do cristianismo, ele é histórico e narrativo. Sendo assim, defender que, devido à relação sincrônica, seria difícil utilizar a teoria do medievalism é um equívoco, desconsiderando a natureza da temporalização cristã e da sua relação com a história. No entanto, há sim um problema, ao contrário de grande parte dos objetos do medievalism, filmes, jogos, livros etc., não necessariamente, o público leigo presente durante uma liturgia, consegue, a contrapelo da teologia, evidenciar as relações entre a teologia subjacente, majoritariamente desenvolvida durante o medievo, e o seu uso contemporâneo, à exceção de grupos que fazem essa relação de forma explícita, como, por exemplo, a Associação dos Arautos do Evangelho, entre outros. Portanto, para se considerar o uso da teoria do medievalism, necessariamente, temos que recorrer ao seu caráter codisciplinar e, ainda, a uma relação teórica com a teologia e, por que não, com a própria filosofia medieval. Segundo o que defendemos, para se utilizar essa teoria, é importante considerar os seguintes aspectos, a forma peculiar com a qual a religião lida com o tempo, ou seja, de forma multitemporal e, inclusive, às vezes, atemporal; ainda, o recurso à auctoritas, como fonte de legitimação e identidade, e, por último; a crítica ao desencantamento do mundo engendrado pelo iluminismo, ou seja, a religião é, por excelência o campo da mirabilia, que é um constructo medieval.
Atenciosamente,
Clínio Amaral
Prezados Clinio e João
ResponderExcluirSeria interessante analisar igualmente o fato de que muitos autores dos círculos protestantes históricos, sobretudo reformados (calvinistas), não façam o uso da teoria do "medievalism" em sentido positivo, mas justamente o contrário, pois eles estabelecem uma relação direta com o período patrístico. Assim, a teoria do "medievalism" deveria, neste caso, ser considerada de forma inversa, já que para muitos a Reforma foi uma ruptura com as práticas religiosas "medievais" (conotação muito negativa nos círculos protestantes e que, muitas vezes, é usada para falar de práticas pentecostais ou neopentecostais).
De qualquer forma, é fato que todos os segmentos religiosos - particularmente do cristianismo - evocam determinados estágios históricos como forma de legitimar sua prática atual, seja este do período medieval, ou mesmo dos primórdios da era cristã (EA).
Há da parte dos autores alguma intenção futura quanto a este aspecto desta investigação da teoria do "medievalism"?
César Moisés Carvalho
Prezado César!
ResponderExcluirQuanto aos seus comentários iniciais, embora concordemos com algumas rupturas trazidas pela(s) reforma(s), achamos importante destacar que muito do debate sobre elas está “contaminado” por questões posteriores aos próprios reformadores. Apenas para dar um exemplo, os reformadores, sobretudo, Calvino são representados por um discurso iconoclasta que, na prática, eles não necessariamente tinham, ou seja, muito do que se criticava em relação ao culto aos santos, dizia respeito notadamente à Legenda Áurea, mas não se aplicava aos mártires. A própria pesquisa do João Lisboa sobre o martirológico de Jean Crespin corrobora a nossa afirmação.
Em relação à teoria do medievalism, eu tenho o interesse de utilizá-la para pensar duas noções de auctoritas, que em minha avaliação faz parte da forma como os pentecostais e neopentecostais leem a Bíblia, e as relações temporais/atemporais presentes nos cultos. Todavia, o uso da idade média que eu vejo não tem nenhuma relação com uma visão pejorativa. Na verdade, defendo que, apesar de um certo grau de desencantamento, trazido pela Reforma e, sobretudo, pelo iluminismo, as manifestações religiosos cristãs, grosso modo, ainda mantêm um caráter de encantamento que, em minha opinião, tem origem medieval na forma de expressar a experiência religiosa.
Atenciosamente,
Clínio Amaral
Creio que o desafio é grande, uma vez que o cristianismo tende a negar sua historicidade, ou seja, ele se propõe ao mesmo tempo como sempre atual, ou jamais ultrapassado, mas ao mesmo tempo como imutável. Abordar o medievalismo no contexto religioso significa, em grande medida, enfrentar sobretudo essa questão, evidenciando a mutabilidade e historicidade da religião e, portanto, como ela pode sim se apropriar de leituras projetadas sobre o passado medieval, que não são medievais em si. No texto, que está excelente, vocês não apontam nessa direção. Esse elemento faz parte da reflexão? Ou como vocês interpretam essa questão?
ResponderExcluirPrezada Lukas,
ResponderExcluirConcordo com todas as suas observações. Na verdade, esse texto é um grande esboço de uma reflexão que fiz para a redação de um outro artigo que será submetido em breve a uma revista. Acho que o melhor caminho para pensar em sua questão diz respeito ao tempo, ou melhor, às multitemporalidades engendradas pelo cristianismo.
O investigador ao estudar temas ligados à religião, baseando-se no medievalism, deve considerar que, em diversos momentos, e.g., missa, procissões, bênçãos, o oficiante do ritual lança mão conscientemente de uma reflexão medieval e a atualiza em termos contemporâneos. Como demonstrarei no referido artigo, escrito em conjunto com a professora Maria Eugência Bertarelli, a idade média foi a responsável por lidar com uma série do que chamaríamos de multitemporalidades, inclusive, sobre a própria suspensão do tempo durante a Eucaristia, cuja reflexão teológica encontra-se, em grande parte, na idade média, inclusive, utilizando esse período como fonte de autoridade e de identidade. Como dissemos anteriormente em nosso texto, as objeções relacionadas por Utz acerca da forma como o religioso relaciona-se com o tempo tem suas origens na reflexão medieval acerca dele. Portanto, em diversos aspectos do campo religioso, não necessariamente haveria a necessidade, de forma explícita, de se vincular ao medievo, posto que a relação com a multitemporalidade já é per se, um aspecto que dever ser analisado por intermédio do medievalism.
Richard Utz não considerou o fato de que a religião, apesar de sua relação sincrônica com o tempo, teria também uma relação diacrônica. E, no caso específico, do cristianismo, ele é histórico e narrativo. Sendo assim, defender que, devido à relação sincrônica, seria difícil utilizar a teoria do medievalism é um equívoco, desconsiderando a natureza da temporalização cristã e da sua relação com a história. No entanto, há sim um problema, ao contrário de grande parte dos objetos do medievalism, filmes, jogos, livros etc., não necessariamente, o público leigo presente durante uma liturgia, consegue, a contrapelo da teologia, evidenciar as relações entre a teologia subjacente, majoritariamente desenvolvida durante o medievo, e o seu uso contemporâneo, à exceção de grupos que fazem essa relação de forma explícita, como, por exemplo, a Associação dos Arautos do Evangelho, entre outros. Portanto, para se considerar o uso da teoria do medievalism, necessariamente, temos que recorrer ao seu caráter codisciplinar e, ainda, a uma relação teórica com a teologia e, por que não, com a própria filosofia medieval. Segundo o que defendemos, para se utilizar essa teoria, é importante considerar os seguintes aspectos, a forma peculiar com a qual a religião lida com o tempo, ou seja, de forma multitemporal e, inclusive, às vezes, atemporal; ainda, o recurso à auctoritas, como fonte de legitimação e identidade, e, por último; a crítica ao desencantamento do mundo engendrado pelo iluminismo, ou seja, a religião é, por excelência o campo da mirabilia, que é um constructo medieval.
Atenciosamente,
Clínio Amaral
Bela obra! Gostaria de saber se, ainda hoje, contamos com este mesmo tipo de legitimação religiosa, na visão de vocês, em nossa sociedade.
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