Rodrigo Kmiecik


AS COMUNIDADES CRISTÃS PRÉVIAS À CONSOLIDAÇÃO DO CORPO ECLESIÁSTICO NA ESCANDINÁVIA MEDIEVAL



Introdução
A cristianização da Escandinávia é tema recorrente nas produções acadêmicas realizadas no Brasil, especialmente nos últimos anos. As abordagens vão desde os primeiros bispos missionários à conversão dos reis, processo que atravessa mais de dois séculos. O tema a ser discutido neste trabalho é a presença de cristãos na Escandinávia medieval antes do corpo eclesiástico católico lá haver se consolidado, portanto, comunidades cristãs sem igreja. Para tais fins, foram escolhidas duas fontes textuais, a Vita Anskarii de Rimbert e a Gesta Hammaburgensis de Adam de Bremen, que possibilitassem a análise do tema sob prismas, autores e contextos temporais diferentes. Objetiva-se compreender como esses autores perceberam e significaram esses cristãos prévios à consolidação da cristianização em seus textos.

Base metodológica
O que difere as fontes escolhidas são sua tipologia, a Vita Anskarii sendo uma hagiografia e a Gesta Hammaburgensis, uma obra de historiografia. Quanto a isso, é necessário analisar algumas especificidades da abordagem de um texto hagiográfico, por motivos metodológicos que se alinham à metodologia principal, a Vorstellungsgeschichte. As obras hagiográficas do medievo oferecem rica fonte de análise quando as entendemos em sua completude documental, como defendeu Néri de Barros Almeida. Segundo a autora,

“Na abordagem documental do testemunho, a parte “confiável” ou “verdadeira” não pode ser discernida da parte “não confiável” ou “fabulosa”. Desse ponto de vista o testemunho enquanto realidade formal e seu conteúdo são submetidos a perguntas de cujas respostas se depreendem as razões de sua própria especificidade. Nesse caso, a historicidade do documento reside não apenas nos dados que comunica, mas em sua totalidade enquanto fato cultural. Assim, os textos de história escritos na Idade Média, não mentem, não estão enganados, nem traem a tradição de escrita histórica, mas se situam nela de maneira específica.” [Almeida, 2014, p. 95]

Portanto, o uso dos documentos vai além da sua função de fonte, como chama Almeida, em informar o factual – datas e eventos –, abrangendo também o que a autora chama de documental, compreendendo o documento, assim, em sua totalidade. Ainda, guiado pelas orientações de Marc Bloch [2001], direciono meus esforços ao que as fontes podem responder quando interrogadas, “sobre as maneiras de viver ou de pensar particulares às épocas em que foram escritas, todas as coisas que o hagiógrafo não tinha o menor desejo de nos expor” [Bloch, 2001, p. 78]. Tais definições buscam trazer luz sobre a mão do autor e suas percepções, visões de mundo, opiniões, cargas institucionais e tudo que vem junto de sua pena.

Alguns apontamentos de Hans-Werner Goetz são centrais para o entendimento das fontes selecionadas para essa pesquisa. O autor entende que “os autores não escreveram o que realmente aconteceu, mas o que eles pensavam ou acreditavam (ou queriam) que havia acontecido.” [Goetz, 2006, p. 17]. Portanto, o factual muitas vezes está além do alcance do historiador pois, mesmo no tempo em que os registros foram concebidos, estes foram “construídos” por quem os registrou. Ainda segundo Goetz,

“Lidando com a historiografia como tal, contudo, o nosso interesse deslocou-se dos fatos para sua percepção (ou, como argumentei, para as concepções do autor), da 'realidade' para a sua 'construção', e das evidências dadas nas 'fontes' aos seus autores como testemunhas contemporâneas de seu tempo.” [Goetz, 2006, p. 19]

Portanto, os fatos do passado devem ser interpretados como percepções dos autores sobre sua realidade e, cabendo a nós entender, como isso é construído na fonte. Assim, intenções pessoais do autor e suas impressões sempre vão impregnar o registro textual, muitas vezes determinado por tradições linguísticas ou literárias, ou pela estrutura e função de um gênero. Essa base metodológica de análise das fontes nos permite ler e interpretar tanto a Vita Anskarii de Rimbert quanto as Gesta Hammaburgensis de Adam de Bremen, buscando compreender o sentido que esses autores dão ao falar dos cristãos vivendo na Escandinávia antes de lá existir igreja, nos inícios da cristianização.

Evangelização, periodização e problemas com as fontes
Muito se discute a respeito da periodização do processo de evangelização da Escandinávia medieval. Esse trabalho segue a periodização proposta por Anders Winroth, na qual o autor estabeleceu uma divisão do processo de evangelização em duas fases: conversão e cristianização.

“Através da arqueologia, podemos estudar essa lenta infiltração na adoção de práticas cristãs de sepultamento e na adoção de símbolos cristãos. Por outro lado, houve a conversão institucional da região. Durante esse processo, os reis escandinavos destruíram templos pagãos, construíram igrejas, estabeleceram dioceses e introduziram a realeza cristã. Esse processo começou mais tarde e se desenvolveu mais rapidamente.” [Winroth, 2012, p. 103].

Winroth descreveu a cristianização como um lento processo de assimilação das crenças e das práticas na Escandinávia desde seu contato com o mundo cristão. Define tal processo como lento e inconstante. Partindo dessa periodização, o recorte temático se encaixa no que o autor chamou de cristianização, uma vez que o objeto de análise nas fontes, as comunidades cristãs, são prévias à institucionalização da igreja na Escandinávia, ainda que registradas por autores que marcam o início da fase conversora.

Ainda de acordo com Winroth, “o material arqueológico nos fala sobre o processo de cristianização, enquanto as fontes escritas focam na conversão institucional, no batismo de chefes e reis, na construção de igrejas e instalações de bispos” [Winroth, 2012, p. 104]. Tal afirmação traz uma carga um tanto problemática, uma vez que o autor aponta numa direção definidora de que as fontes arqueológicas oferecem possibilidades de abordagem mais competentes ao historiador do que as fontes escritas, no que se refere ao período de cristianização.

Para Winroth, por exemplo, Adam de Bremen relata apenas o que sabia e o que via a respeito da cristianização dos escandinavos, o que é verdade, mas tomada pelo medievalista como um problema de insuficiência documental. Winroth se propôs a contrariar a perspectiva do cônego bremense a partir das fontes arqueológicas. Eis um problema, dado que o papel do historiador não é preencher as lacunas do passado com fontes de outra matriz, mas entendê-las em suas diferentes especificidades temporais e espaciais. O que interessa aqui é saber o que pensavam Adam e Rimbert a respeito da cristianização da Escandinávia, uma vez que esse trabalho não se lança aos “aspectos tangíveis do passado, mas centra-se nas ideias que os indivíduos do passado tinham de seu meio, suas visões de mundo.” [Grzybowski, 2012, p. 156].

Ainda nesse problema, “uma segunda camada de distorção vem de como a conversão foi entendida pelos escritores medievais” [Winroth, 2012, p. 120]. Ora, as impressões dos autores medievais não se caracterizam como distorções dos fatos, que devem ser restituídas pela arqueologia, como propôs Winroth. Ao contrário, as “distorções” são intrínsecas às percepções dos autores, pois, como apontou Hans-Werner Goetz, “ao analisarmos essa ‘distorção’ ou, mais adequadamente, a ‘construção’ específica de uma crônica ou relato, adquirimos valiosos insights sobre o autor e sua obra.” [Goetz, 2006, p. 20]. Logo, o documento deve ser compreendido em sua totalidade, na qual tudo é verdade e carrega significado.

Em diversos trabalhos foi discutida a presença de cristãos além das fronteiras da cristandade. Segundo Edward Arthur Thompson, “no mundo escandinavo, por exemplo, as missões tinham de ser baseadas nos comerciantes e nos postos comerciais, caso contrário seria impossível realizá-las”. [Thompson, 1957, p. 6], como observamos na viagem de Ansgar à Suécia.

Amparando sua análise em termos gerais, Thompson afirma que “se uma comunidade cristã fosse encontrada além da fronteira [da cristandade], a igreja consagraria um bispo para administrá-la.” [Thompson, 1957, p. 9]. Tanto havia resistências entre os pagãos, quanto havia cristãos vivendo e praticando sua fé antes da institucionalização da igreja na Escandinávia, e as fontes escolhidas importam-se em abordar esse motivo em sua construção narrativa.

É importante ressaltar que tanto a Vita Anskarii quanto as Gesta Hammaburgensis surgem, apesar de separadas por quase duzentos anos, num contexto semelhante de esforços direcionados à evangelização da Escandinávia – um inicial, com os primeiros bispos missionários; e outro mais tardio, sublinhando os êxitos e as incompletudes dessas empreitadas.

A Vita Anskarii
A Vita Anskarii foi composta por Rimbert poucos anos depois da morte de seu mestre, Ansgar, que faleceu em 865. O texto hagiográfico foi composto em Latim, tendo como objetivo principal santificar a pessoa de Ansgar. Narra a vida de Ansgar, sua relação com o bispado de Bremen e o rei Luís, o Piedoso, e suas incursões à Escandinávia, onde evangelizou na Dinamarca, em Hedeby e Ribe, e na Suécia, em Birka.

Como apontou James T. Palmer, o texto de Rimbert fora “endereçado ao monastério de Corbie, em Flanders” [Palmer, 2004, p. 236], próximo a Amiens, na Picardia. O fato de conhecermos o destino da hagiografia pode suscitar algumas interpretações a respeito de sua função. Seria lida por eclesiásticos do mosteiro onde o próprio Ansgar havia se educado desde tenra idade, em Corbie. Diferentes de Ansgar que se tornou engajado nas missões à Escandinávia após ser transferido para Corvey e aproximar-se de Hamburgo-Bremen, os monges de Corbie seguiam a ordem beneditina e assim eram afastados das atividades missionárias. Na conclusão de Palmer, o autor entende que Rimbert busca apoio franco às missões de Hamburgo-Bremen.

Palmer destaca que “conforme desenvolveu-se, a hagiografia não permaneceu como um gênero único, mas adotou uma multiplicidade de formas interligadas, sendo escrita para uma série de fins espirituais e políticos.” [PALMER, 2004, p. 239]. Faz-se necessária tal ideia, nessa pesquisa, buscando entender a função e o sentido de Rimbert mencionar os escravos cristãos vivendo na Escandinávia. O hagiógrafo assim escreveu no capítulo XI da Vita Anskarii:

“Havia muitas [pessoas] dispostas a cumprir sua missão e que ouviam de bom grado os ensinamentos do Senhor. Havia, também, muitos cristãos escravos (captives) entre eles, que regozijaram por finalmente poderem participar dos mistérios divinos (divine mysteries)”. [Rimbert, 1921, p. 18].

O episódio ocorre durante a primeira viagem de Ansgar à cidade de Birka, junto de seu companheiro de missão, Witmar, em 830. De acordo com o texto hagiográfico, muitos se converteram ao cristianismo e aceitaram a graça do batismo, inclusive o prefeito da cidade, um homem chamado Herigar, que “pouco tempo depois construiu uma igreja em sua propriedade e serviu a Deus com devoção máxima” [Rimbert, 1921, p. 18]. No que diz respeito aos escravos mencionados, nosso foco de reflexão, podemos levantar algumas hipóteses. Rimbert destaca que eles “regozijaram por finalmente poderem participar dos mistérios divinos” [Rimbert, 1921, p. 18]. É compreensível que o autor percebia esses cristãos como incompletos em sua prática religiosa, por não possuírem igreja, não possuírem padres ou bispos para guiarem qualquer culto, e não comungavam dos “mistérios divinos”. O cristianismo era, sobretudo, uma religião de comunhão, estritamente coletiva, e pode ser que os “mistérios divinos” ditos por Rimbert só pudessem ser alcançados sob a comunhão e orientação de um corpo eclesiástico.

Além do fato desses cristãos serem escravos (captives) e estarem submetidos a algum senhor – pagão ou não –, são limitados, ainda, por seu tipo de fé, individual, distante da igreja que ainda não existe lá. Mas quando a igreja chega, com Ansgar e Witmar e sua evangelização, esses cristãos finalmente podem compartilhar da Palavra, podem juntar-se ao corpo religioso, são, em suma, reintroduzidos, quase como se fossem convertidos. Assim como Rimbert percebia e significava os pagãos em Birka como um “outro religioso”, parecia ver os cristãos de semelhante modo. A reintegração desses cristãos soa quase em pé de igualdade com a importância de converter e batizar os pagãos.

A menção desses cristãos caminha em concordância com o que Thompson argumentou em seu artigo aqui já citado. Havia comunidades cristãs além das fronteiras da cristandade, que precisavam ser administradas e florescidas pela igreja; o julgamento e a construção de Rimbert parece reforçar essa ideia. Além disso, como dito, a Vita Anskarii fora escrita para ser lida pelos eclesiásticos do monastério de Corbie. Como apontou Palmer, ao falar sobre os últimos capítulos da hagiografia, “em vez de afirmar que Ansgar tinha convertido o Norte, a história foi deixada em aberto, com Ansgar ansioso para que outros continuassem seu trabalho.” [Palmer, 2004, p. 245]. Assim, o documento vai tanto no sentido de exaltar as ações daqueles que rumaram ao norte para evangelizar, como um apelo aos novos monges para prosseguirem a empreitada iniciada por Ansgar, um “modelo missionário” a ser seguido.

Ainda há o fator político. Scott A. Mellor defendeu a ideia de que a Vita Anskarii não foi apenas uma hagiografia com função de santificar Ansgar, mas também um texto de historia ecclesiastica. Segundo esse autor, “Rimbert não se concentrou apenas na vida de Ansgar, mas também no que diz respeito à fundação de uma arquidiocese em Hamburgo e da importância dessa nova instituição nas missões na Dinamarca e na Suécia.” [Mellor, 2008, p. 44].

Quanto aos cristãos prévios, Mellor trouxe em seu texto uma das interpretações possíveis, pensada por Carl F. Hallencreutz, que teorizou que tanto a igreja quanto os francos eram contra a escravidão, naquele momento, e isso é um dos motivos narrativos presentes na hagiografia. Segundo Hallencreutz, na leitura de Mellor, “embora a igreja possa ter condenado a escravidão, foi a mudança do império franco da escravidão para a servidão que moldou a economia e a política regionais" [Mellor, 2008, p. 47]. Tanto Mellor quanto Hallencreutz enxergam um caráter político na Vita Anskarii de Rimbert; seja a menção aos cristãos de cunho político ou não, elas têm como primeiro objetivo incentivar a junção desses cristãos à cristandade.


A Gesta Hammaburgensis
O texto historiográfico, escrito pelo cônego Adam de Bremen nos fins do século XI, tem como base diversas obras que estavam disponíveis ao autor naquele tempo, a partir de sua pesquisa, além de inúmeros relatos orais, de modo que Adam nomeia várias de suas fontes e faz releituras de algumas delas ao incrementá-las ao seu texto. Quanto ao trecho aqui abordado, trata-se de uma releitura da Vita Rimberti, hagiografia anônima de Rimbert.

“Assim, São Rimbert, como Moisés, foi um homem de extrema brandura, como diz o Apóstolo, aquele que tinha compaixão com as enfermidades de todos; mas ele era especialmente preocupado em socorrer os pobres e os mantidos em cativeiro. Então um dia, quando ele adentrou a Dinamarca, onde ele havia construído uma igreja para a jovem cristandade em um lugar chamado Schleswig, ele viu uma multidão de cristãos arrastada em cativeiro por correntes. Por que dizer mais? Lá ele realizou um milagre duplo: quebrou as correntes com sua oração e pagou o resgate dos cativos com seu cavalo.” [Adam de Bremen, 1959, p. 40].

Segundo Lukas Grzybowski, a escolha dessa passagem resgatada do material hagiográfico por Adam de Bremen reforça a imagem que queria se construir de Rimbert, o “espírito de um homem piedoso e um líder religioso preocupado não somente com os grandes círculos, mas com o bem-estar de todos os cristãos sob seu cuidado.” [Grzybowski, 2016, p. 155]. Nada retoricamente mais poderoso que um milagre para reforçar uma ideia eclesiástica, uma vez que, ainda segundo Grzybowski, "para Adam de Bremen, a marca do verdadeiro santo é o seu trabalho missionário” [Grzybowski, 2016, p. 156]. De acordo com Ian N. Wood, “o cristianismo deveria ser uma religião missionária” [Wood, 2004, p. 3], tendo assim sido postulado pelo texto bíblico: “Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” [Mt 28:19]. Neste trecho da Gesta, o trabalho missionário é elevado a um milagre, tal o evento escolhido por Adam a ser recontado ao falar das ações de Rimbert. Novamente é mostrado que os escravos são libertos e reintegrados, enfim salvos. Em Rimbert, eles finalmente podem comungar dos “mistérios divinos”. Em Adam, eles são libertos através da oração e resgatados. Entende-se que são reintegrados à cristandade.

Considerações finais
Essas menções e a percepção dos autores a respeito das comunidades cristãs prévias à institucionalização do corpo eclesiástico na Escandinávia são um argumento em favor da existência desse corpo eclesiástico. A retórica desses autores gira em torno de fundamentar as bases da conversão de almas e da consolidação da igreja católica na Escandinávia medieval, além de funcionar como legitimadora das ações da arquidiocese de Hamburgo-Bremen. Quando Rimbert fala dos escravos cristãos em Birka, na Suécia, pretende reforçar o argumento de que as ações missionárias precisavam existir em função da reintegração desses cristãos “perdidos”. Quando Adam de Bremen fala dos escravos cristãos em Schleswig, na Dinamarca, reitera a ação milagrosa de Rimbert em função de elevar o papel da ação missionária.

Desde os primeiros esforços conversores no início do século IX à fase institucional com a conversão dos reis escandinavos no século XI, a presença de não-conversos é sempre registrada, o que justifica a manutenção de tais argumentos nos documentos estudados. Como outros exemplos, há o relato do diplomata árabe Ibrahim ibn Yakub al-Turtushi, que visitou a cidade de Hedeby, na Dinamarca, no século X, e contou que ela era “habitada tanto por pagãos quanto por cristãos” [WINROTH, 2012, p. 89]. Ainda depois da conversão dos reis, persiste material hagiográfico que reverbera a necessidade conversora numa tradição literária, como a Passio et Miracula beati Olavi, hagiografia do rei Olavo II da Noruega, escrita no século XI, na qual em dado momento o rei, após converso, desce de seus estrados para pregar. “Não contente com a sua própria salvação, ele [Santo Olavo] se esforçou em incansável urgência para converter as pessoas a quem ele fora nomeado pela providência divina para governar.” [Eysteinn Erlendsson, 2001, p. 27].

É bastante perceptível que tal motivo narrativo é recorrente ao longo dos séculos que duram a conversão. No caso das fontes estudadas, ainda que separadas por duzentos anos, os escravos cristãos na Escandinávia desse longo período são mais um motivo para que ação evangelizadora aconteça, e aí reside a importância de mencioná-los em tantos âmbitos, pois reintegrar esses cristãos fazia parte, portanto, do trabalho missionário. Ora, a cristianização da Escandinávia é um processo lento e inconstante, que atravessa séculos, de modo que as fontes ressaltam, por motivos e narrativas semelhantes, as ações missionárias empreendidas por Hamburgo-Bremen, instituição a qual Rimbert e Adam de Bremen legitimam em seus trabalhos.

Referências bibliográficas
Rodrigo Kmiecik é graduando em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), orientado pelo professor Dr. Lukas Gabriel Grzybowksi.

ADAM DE BREMEN. History of the archbishops of Hamburg-Bremen. New York: Columbia University Press, 1959.
RIMBERT. Life of Anskar. In: ROBINSON, Charles H. Anskar, The Apostle of the North, 801-865, translated from the Vita Anskarii by Bishop Rimbert his fellow missionary and successor. London: SPCK, 1921. 
ALMEIDA, Néri de Barros. Hagiografia, propaganda e memória histórica. O monasticismo na Legenda áurea de Jacopo de Varazze. Territórios e Fronteiras (Online), v. 7, p. 94-111, 2014.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Evangelho segundo São Mateus. Tradução de Theodoro Henrique Maurer Jr. São Paulo: Paulus, 7ª reimpressão, 2011.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
ERLDENDSSON, Eysteinn. The Passion and the Miracles of the blessed Óláfr. IN: PHELPSTEAD, Carl (Ed.) A History of Norway and The Passion & The Miracles of the Blessed Óláfr. Exeter: Short Run Press, 2001.
GOETZ, Hans-Werner. Constructing the past. Religious dimensions and historical consciousness in Adam of Bremen's Gesta Hammaburgensis ecclesiae pontificum. In: MORTENSEN, Lars Boje (Ed.). The Making of Christian Myths in the Periphery of Latin Christendom. Copenhagen: Museum Tusculanum Press University of Copenhagen, 2006.
GRZYBOWSKI, Lukas. O início da missão cristianizadora da Escandinávia e sua interpretação nas Gesta Hammaburgensis de Adam de Bremen. SIGNUM - REVISTA DA ABREM, v. 17, p. 136-160, 2016.
GRZYBOWSKI, Lukas. Uma Terceira Via para o Estudo das Ideias Políticas: A Vorstellungsgeschichte como resposta aos problemas colocados pela Cambridge School of the History of Political Thought. Revista Diálogos Mediterrânicos, v. 3, p. 143-159, 2012.
MELLOR, Scott. St Ansgar: His Swedish Mission and Its Larger Context. IN: DUBOIS, Thomas. Sanctity in the North: Saints, Lives, and Cults in Medieval Scandinavia. Toronto: Toronto University Press, 2008, p. 40-76.
PALMER, James. Rimberts Vita Anskarii and Scandinavian Mission in the Ninth Century. The Journal of Ecclesiastical History, v. 55, n. 2, p. 235–256, 2004.
THOMPSON, Edward. Christianity and the northern barbarians. 1957.
WINROTH, Anders. The conversion of Scandinavia: Vikings, merchants, and missionaries in the remaking of Northern Europe. New Haven: Yale University Press, 2012.
WOOD, Ian. The missionary life: Saints and the evangelisation of Europe, 400 1050. Oxon, New York: Routledge, 2014.

10 comentários:

  1. Como explicitou no início do texto, o interesse na pesquisa da cristianização dos escandinavos vem crescendo bastante entre os estudiosos no Brasil. O professor Dr. Johnni Langer do Núcleo dos Estudos Vikings e Escandinavos acredita que o tema da cristianização europeia recebe mais evidência na Escandinávia medieval devido a sua “inclusão extremamente tardia no mundo cristão” [LANGER, 2011]. Levando em consideração que grande parte das sagas e contos islandeses, uma das principais fontes escritas para estudar a História da Escandinávia, possui em suas narrativas um juízo cristão e difamação dos antigos deuses e uma recusa, a priori, do deus cristão por alguns senhores locais, chamados de godar [OLIVEIRA, 2015], além de achados arqueológicos de Pingentes de Fosse do século IX com figuras de cruz presente no martelo de Thor, igrejas e esculturas também com imagens do deus do trovão, na Islândia, uma questão em voga é o caráter da conversão e a substituição das antigas práticas pelas cristãs. Por fim, o que me chamou a atenção no texto foi a pretensão de discutir a presença de cristãos na Escandinávia medieval antes da consolidação do corpo eclesiástico católico. A partir da perspectiva de análise do contato entre cristãos e comunidades da região da Escandinávia, realizando o exercício de olhar esse processo de baixo para cima e não de cima para baixo, ou seja, sob a ótica do povo, podemos pensar a formação da identidade cristã dos povos do norte como um hibridismo entre as culturas cristã e pré-cristãs?
    Autor da Pergunta: Lucas Pinto Soares

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    1. Olá, Lucas. Obrigado pela pergunta.

      Quanto às fontes mais tardias que abordam o processo de cristianização, como as sagas, que você citou, é interessante ressaltar sua função naquele contexto e as intenções e representações que os autores desenvolveram. Como a metodologia que eu uso orienta, é importante a gente olhar pra essas construções, que têm função, em vez de tomá-las como distorções. Segundo o Anders Winroth (2012), o aspecto religioso tinha papel secundário nos embates entre pagãos e cristãos na Escandinávia, uma vez que as questões políticas e de terra eram preponderantes. Boa parte dessas tentativas de cristianização foram repelidas ou retardadas por chefes locais pagãos em disputa pelo poder local, como no caso de Olav Tryggvason, que volta ao norte convertido após pilhagens na Inglaterra e toma o poder na Noruega, entretanto, encontra oposição no Earl Erik e no rei Olof Sveinsson da Suécia, que derrotam Olav Tryggvason no ano 1000 e a Noruega volta a ser governada por um chefe pagão, o próprio Earl Erik. Portanto, segundo alguns autores, a questão da legitimação política supera o embate entre paganismo e cristianismo na experiência histórica. O que vai acontecer é que, tardiamente, como na saga do Olaf Tryggvason (composta no século XIII), em que seu ímpeto cristianizador é exaltado por um autor islandês, num contexto que lhe cabia tal legitimação, visto que a Islândia passava por um processo de conversão mais acelerado depois do século XI.

      Quanto à questão do hibridismo entre as culturas cristãs e pré-cristãs, é uma questão interessante. É algo que me foge ao alcance, uma vez que eu estudo as fontes dos próprios missionários falando sobre esses cristãos "prévios". É observável que esses missionários, como Ansgar e Rimbert, entendiam que os cristãos já existentes na Escandinávia deviam ser reintegrados à cristandade, então é provável que houvesse hibridismo e a fomentação de um cristianismo pagão às avessas (pra usar o conceito do Frank Viola). É um campo em que a arqueologia pode ser bastante frutífera para o desenvolvimento das pesquisas.

      Cordialmente,
      Rodrigo Kmiecik Passos.

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    2. Olá, Rodrigo, agradeço a resposta, foi bastante esclarecedora. Aproveito para convidar a ler meu texto aqui nessa mesa do simpósio. Tenho como foco de pesquisa analisar as sagas islandesas e compreender o processo de cristianização a partir de aspectos não só políticos, mas também culturais. Ainda, tenho como debate central a questão religiosa. É sempre bom termos outras perspectivas e por isso me interessei bastante pelo seu texto. Skål!
      Lucas Pinto Soares

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  2. Texto bastante inteligível. Pensando a presença de escravos cristãos em meio ao mundo de seus senhores, de homens e mulheres "pagãos", poderia-se pensar em uma possibilidade desses escravos influenciar esses grupos. Seja por resistências, pela presença dos símbolos cristãos, por orações/liturgias individuais?
    Poderíamos considerar essa possibilidade de escravo cristão influenciar, não exatamente uma conversão, mas vias de conversão aos seus senhores e pessoas ligadas?

    Autor da pergunta: Vítor Mateus Viebrantz
    vitormateusviebrantz@gmail.com

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    1. Olá, Vítor. Obrigado pela pergunta.

      Sim! É justamente o que vai motivar o Anders Winroth a fazer sua divisão entre "cristianização" e "conversão". Há poucas fontes sobre a cristianização, o processo lento de assimilação de crenças, e muitas delas pertencem ao campo arqueológico, onde podemos observar as diferentes práticas funerárias entre essa sociedade que se tornava híbrida aos poucos, etc. A questão é que é muito difícil comensurar o quanto esses cristãos escravos podiam influenciar a religião local. Mas o cristianismo vinha de todos os lados, especialmente nas cidades portuárias que estavam em constante contato com o continente cristão. Isso só se intensifica com a vinda dos primeiros missionários, mas ainda com eles o processo continua lendo e levará mais duzentos anos para culminar na fase da conversão. Então, sim, é possível que haja essa influência, não só vinda dos escravos, mas também de comerciantes cristãos que visitavam os portos escandinavos com frequência.

      Cordialmente,
      Rodrigo Kmiecik Passos.

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  3. Bom dia, o texto é muito esclarecedor de como o proselitismo cristão operou a cristianização do norte da Europa; os século X e XI foram fundamentais para a região escandinava, porém o processo de cristianização do norte da Europa se estendeu até meados do século XIII no Báltico por exemplo, e de forma muito mais violenta em comparação; as cruzadas do norte, e a destruição de cidades na Polônia por cavaleiros teutônicos por exemplo, difere do sincretismo aparentemente pacífico que relatam as fontes escandinavas. Primeira pergunta, qual fator principal que explica processos aparentemente diferentes da cristianização do norte europeu? E segunda, quão verdadeira é a tese do maior apelo da religião cristã primitiva entre as camadas mais populares, servos, escravos..., em oposição a uma elite que persistiria nas práticas pagãs? Essa teoria tem fundamento?
    Pâmella Holanda Marra

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    1. Olá, Pâmella. Obrigado pelas perguntas.

      Segundo os principais autores que venho lendo no desenvolvimento dessa pesquisa, o principal fator pra explicar esse processo é a questão da recepção dos escandinavos para com a religião cristã. Não sei como se deu no Báltico e entre os eslavos, não tenho leitura sobre isso, mas com os escandinavos a coisa caminhava há muitos séculos pelo forte tráfego mercantil no mar do norte, especialmente após a intensificação do domínio árabe no sul, no mar Mediterrâneo. As principais cidades escandinavas crescem em torno da política mercantil dos chefes com o continente e, nesse tráfego comercial, vem junto todo um tráfego cultural e uma incisão política de mão dupla. Há tanto o interesse do continente, especialmente dos germânicos, em converter o norte escandinavo, quanto os chefes escandinavos possuem - em menor e maior grau, dependendo também do século, uns mais tardios e outros mais precoces - interesse em adotar o cristianismo com religião "oficial". Isso se dá especialmente com a cristalização nas monarquias na Escandinávia, no século XI e XII.

      Essa teoria me parece um pouco complicada, porque a cristianização vai agir de muitas maneiras diferentes na sociedade escandinava, sendo difícil delimitar quais classes e à quais interesses ela melhor supria. Temos piratas (vikings) que voltam da Inglaterra e de outras viagens convertidos; temos reis exilados que, na Alemanha, se convertem; temos escravos cristãos do continente trazidos e comercializados na Escandinávia; então, é um processo muito longo e múltiplo, agindo em várias facetas dessa sociedade, sendo extremamente difícil e até arriscado, pela falta de fontes, delimitar precisante onde se tinha maior adesão dessas crenças.

      Espero ter respondido. Cordialmente,
      Rodrigo Kmiecik Passos.

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  4. Olá Rodrigo,
    Muito bom o texto e trabalho com as fontes. A partir das duas fontes mencionadas, seria possível pensar no uso do cristianismo e da cristianização de pagãos como um fator de construção de identidades locais, que poderia servir para o melhor e mais eficiente exercício da autoridade real?

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Olá, Renato. Obrigado pela pergunta.

      Seria possível pensar, sim. Mas não partindo das fontes que trabalhei. Elas tentam majoritariamente legitimar o corpo eclesiástico e toda a sua estrutura missionária, e isso é observável já nos trabalhos do Rimbert, e continua sendo observável lá na frente, com o Adam de Bremen. Esses autores vão direcionar esforços principalmente para seu próprio meio de atuação.

      Mas, quanto à questão política, a autoridade e legitimação, vão surgir obras futuras, também de cunho eclesiástico, a tentar servir esses propósitos. Dois exemplos são a hagiografia do Santo Olavo II, que citei ligeiramente nas considerações finais, e também a saga do Olaf Tryggvason, que busca legitimar outros poderes régios após 200 anos do Olaf Tryggvason, através do seu exemplo. Mas, sim, de modo geral a construção de uma ideia de cristandade costuma vir acompanhada de uma legitimidade régia, especialmente quando os reis começam unificar os reinos escandinavos sob a tutela, já, do cristianismo.

      Cordialmente,
      Rodrigo Kmiecik Passos.

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