DIÁLOGOS E CAMINHOS PARA A
DESCOLONIZAÇÃO DO ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL
Breve
panorama da medievalística brasileira
Como qualquer país do continente
americano, o Brasil não vivenciou a Idade Média. Enquanto um campo de estudos,
frequentemente os pesquisadores da área buscavam – e ainda buscam em certa
medida – legitimar o porquê dos estudos medievísticos no Brasil e qual a
relevância em se estudar o período em detrimento a outras áreas como História
do Brasil ou História Contemporânea.
A organização dos estudos medievais
nos cursos de História nas universidades brasileiras ocorreu mais pela
necessidade da compreensão do período para a formação geral da história a
partir de uma formação integrada, do que para buscarmos nossas identidades
enquanto Estado Nacional. Isso posto, sua inserção nos currículos não foi
estabelecida necessariamente a partir de uma vinculação identitária a nível
cultural ou acadêmica com o período, a fim de justificar nosso passado e nossas
origens. A exceção a respeito do medievo talvez esteja presente, de forma mais
específica, nas atenções voltadas para a história portuguesa, especialmente
para seu precoce Estado nacional e os desdobramentos decorrentes para o a
formação do império português. [Almeida, 2013, p. 2]
Na Europa, o estudo da Idade Média
justificou-se a partir da segunda metade do século XIX, balizando sua narrativa
na busca das origens dos povos europeus. Vinculado a essa ideia, apresentava-se
o conceito de etnia, que muitas vezes acompanhava pari passu o nacionalismo, mantendo suas raízes fincadas nos tempos
da Antiguidade Tardia, sobretudo após a desagregação do mundo romano e seguido
pelo assentamento e constituição dos reinos germânicos. Ao longo do XIX,
historiadores, arqueólogos e linguistas contemplavam o período medieval e a
organização dos grupos étnicos em busca da gênese de seus Estados Nacionais,
vislumbrando a possibilidade de dar coesão aos grupos humanos que compunham
suas fronteiras. Logo, na relação entre o passado medieval e o fortalecimento
do Estado Nacional, trata-se o mesmo de uma comunidade imaginada, no qual as
tradições, os símbolos e os heróis, por exemplo, são criados, a fim de
legitimá-lo [Anderson, 2008]
e é justamente nos primeiros tempos do medievo a qual essa gênese remonta.
Voltando ao caso da academia
brasileira, dos idos de 1990 para cá, o crescimento de pesquisas dentro dos
medievísticos no Brasil, numa ação conjunta de cursos de pós-graduação,
laboratórios, grupos e centros de pesquisa foram responsáveis pelo aumento no
volume de estudos sobre o período. Apesar de relativamente recentes quando
comparados com a academia europeia e estadunidense, desenvolveram-se não como
uma resposta às demandas na área de História, mas graças ao aumento do
incentivo à pesquisa, ao alocar jovens doutores em universidades públicas e
proporcioná-los o desenvolvimento de suas pesquisas. [Almeida, 2013, p. 7-8]
Desde então o interesse de estudantes em universidades brasileiras pelo período
medieval cresceu consideravelmente, o que pode ser atestado pelo aumento do
número de dissertações e teses defendidas na área de História Medieval. No caso
específico da UFRJ, por exemplo, de 1990 a 2017 foram defendidas 111 trabalhos
– entre teses e dissertações – que correspondem a área de História Medieval. [Silva;
Silva; Silva, 2019, p 351 e 359].
Nos últimos anos o medievo tem sido
alvo nas mídias, nos discursos lugares-comum
e de personalidades políticas. Se de um lado observamos o crescimento do
que Umberto Eco chamou de “Idade Média sonhada”, por outro há a adoção de
narrativas que reforçam as representações negativas sobre o período, cercada de
juízos de valores e tornando ainda mais difícil desconstruí-las. Jérôme
Baschet, na Introdução do seu livro A
civilização feudal: Do ano mil à colonização da América, afirma que a
imagem sobre a Idade Média é ambígua, pois, simultaneamente à simpatia pelos
castelos, pela literatura sobre a Távola Redonda, o deslumbramento pelas
catedrais góticas, denota também o obscurantismo, o atraso e a barbárie. [2006,
p. 23-24]
Todavia, discussões e reformulações
das concepções acerca do medievo já foram feitas em diversos artigos e livros
de historiadores brasileiros e estrangeiros. Nos últimos trinta anos,
principalmente, muito já foi discutido sobre os estereótipos a respeito da
Idade Média e em como os mesmos são tendenciosos – para não dizer danosos –
para a compreensão do período dentro do universo não-acadêmico, e não cabe aqui
retomarmos a esse tópico no momento, pois foge do nosso escopo de análise. O
objetivo deste artigo não é exaurir ainda mais esse debate, que outros
medievalistas já fizeram tão pujante e brilhantemente.
A finalidade de nosso texto é
discutir e propor novas abordagens, olhares e análises a serem trabalhadas em
sala de aula sobre o período medieval, trazendo à luz recentes debates
travados. Tanto na Educação Básica quanto nas Universidades, o ensino de
História Medieval ainda é expressivamente marcado pela visão de uma Idade Média
tipicamente ocidentalizada, eurocêntrica e marcada por um viés francófano,
sobretudo por conta da influência francesa em nossa tradição historiográfica.
Tal fato extrapola ao considerarmos o acesso limitado a maior parte da
bibliografia traduzida do inglês ou do alemão – em comparação com as traduções
da língua francesa e a produção ibérica – à qual normalmente os estudantes de
graduação têm acesso. A partir dos estudos pós-colonialistas e de novos
paradigmas discutidos e incorporados pela História Global buscaremos contribuir
com novos olhares e abordagens dentro estudos medievalísticos.
A
contribuição dos estudos pós-colonialistas na História
Antes de iniciarmos nossa discussão,
convém melhor elucidarmos o que entendemos por estudos pós-coloniais. Embora
não esteja sistematizado como teoria propriamente, mas enquanto um campo de
estudos que sinaliza novos paradigmas metodológicos para análise das relações
sociais e da análise cultural, o termo foi empregue inicialmente no contexto
pós-guerra, mas seu uso ganhou mais força a partir da década de setenta, dentro
dos estudos literários. A obra de Salman Rushdie The empire writes back: theory and practice in post-colonial
literatures (1989) é considerada um dos primeiros livros a abrir os estudos
pós-coloniais como um campo de investigação.
Em linhas gerais, os estudos
pós-colonialistas correspondem ao apelo e ao compromisso ético em se
“desocidentalizar” e “deseuropeizar” às perspectivas de mundo e as formas de
saber, lembrando que as ideologias presentes nos modelos pré-existentes e nas
representações tendem a naturalizar a subalternidade, a exclusão e o estatuto
periférico, impondo uma expressiva carga darwinista e juízos de valores e
estéticos. [Mata, 2014, p.
30] Sua importância reside justamente no fato de desconstruir e desnaturalizar
tais estereótipos, trazendo a discussão mais ampla de como as estruturas do
saber estão vinculadas a aspectos ideológicos e, consequentemente, servindo
também a estruturas de poder.
Os estudos pós-colonialistas
salientam, portanto, que é preciso tomar certos cuidados com as construções
epistemológicas e na forma em que as mesmas abordam as relações de poder e em
atividades marcadas pela diferença, como etnia, religião, orientação sexual,
gênero, classe, dentre outros, pois tendem a não problematizar processos
históricos, sobretudo quanto às relações centro versus periferia e colonizador versus
colonizado. Para tanto, entraram no bojo da discussão conceitos como cultura,
identidade e etnicidade, por exemplo.
Um dos destaques recentes dentro
deste campo de estudos tem sido o acadêmico indiano Homi K. Bhabha (1949-).
Influenciado pelo pensador pós-colonialista Franz Fanon (1925-1961) e partindo
de pressupostos teóricos dentro da linguística e da psicanálise, Bhabbha, ao
abandonar as teorias que privilegiam o binarismo maniqueísta, busca compreender
de que maneiras as relações entre colono e colonizador foram constituídas, indo
além da representação que a literatura faz dos sujeitos envolvidos neste
contexto. O autor convida-nos ainda a refletir acerca das relações que
perpassam a construção das identidades de colonizador e colonizado e o espaço
de circunscrição da identidade que ultrapassam os símbolos e signos visuais. De
acordo com essa perspectiva, o autor tece algumas considerações
“Primeira: existir é ser chamado à
existência em relação a uma alteridade, seu olhar ou locus. (...) “É a relação dessa demanda com o lugar do objeto que
ela reivindica que se torna base de identificação”. Este processo é visível na
troca de olhares entre o nativo e colono, que estrutura sua relação psíquica na
fantasia paranóide da posse sem limites e sua linguagem familiar de reversão:
“Quando seus olhares se encontram, ele [o colono] verifica com amargura, sempre
na defensiva, que ‘Eles querem tomar nosso lugar’. E é verdade, pois não há um
nativo que não sonhe pelo menos uma vez por dia se ver no lugar do colono”. É
sempre em relação ao lugar do Outro que o desejo colonial é articulado: o
espaço fantasmático da posse, que nenhum sujeito pode ocupar sozinho ou de modo
fixo e, portanto, permite o sonho da inversão de papéis”. [Bhabha, 1998, p. 76]
As reflexões de Bhabha permitem-nos
vislumbrar como se desenrolam as relações entre nativo e colono sob o prisma do
primeiro. A partir do momento em que o nativo tem suas liberdades cerceadas e
reduzidas por conta de um domínio político, social, econômico, cultural e
militar estabelecido, seu objeto de desejo passa a ser poder desempenhar o
papel do colono, ao qual, no momento, ele é obrigado a se sujeitar. O nativo,
ao lembrar o que perdeu, deseja, na verdade, inverter esse jogo e transmutar-se
no papel do colonizador. No processo de violência física e psíquica ao qual é
submetido não existe apenas o desejo de que o colono se ausente do território
que outrora era seu, mas levar ao rancor vingativo, o qual o impele à vontade de
desempenhar o papel do colono, numa espécie de revanchismo que mantém viva a
memória do que é ser colonizado.
Análise de Bhabha complexifica as
relações sociais envolvidas neste espaço, enriquecendo e acrescentando à ideia
binária que define quem é o colono e quem é o colonizado. O processo de construção das identidades de nativo e
colono é realizado no espaço de cisão, o hiato que faz com que a distância tome
uma proporção – como ele mesmo definiu – perturbadora. O ser diferente traduz,
mesmo que de forma inconsciente, uma relação de alteridade. [Bhabha, 1998, p. 77)] O
colonizador constitui o colonizado tanto quanto o colonizado constitui o
colonizador, um papel agonístico e antagonístico ao mesmo tempo e é justamente
nesse espaço intersticial onde as identidades de ambos são forjadas. Logo, no
entendimento de Bhabha, o processo de formação das identidades ocorre num nível
psicológico bem mais profundo e complexo do que as relações sociais tendem a
presumir.
Bhabha atenta ainda para o fato
também que o colonizado, ao mesmo tempo em que deseja ocupar o local do
colonizador, também não quer abrir mão do papel de colonizado. Tal explicação
reside no fato de que, por ser colonizado, está intrínseco à sua natureza um
desejo de vingança e, caso este objetivo seja atingido, ele perde a sua
identidade com relação ao colonizador. [Sousa, 2004, p. 121]
O conceito de identidade proposta por
Bhabha nos levam a refletir sobre a própria construção dos grupos sociais na
Idade Média. Em constantes interações, seja por meio de conflitos ou de forma
amistosa, os espaços medievais estavam marcados por constantes contatos
culturais, que mutuamente também se influenciam, e foram parte integrantes na
organização dos mesmos e na organização de suas identidades. A ideia de que as
identidades são constituídas num espaço de cisão, intertiscial – inbetween – nos levam a pensar em que
medida as denominações de que lançamos mão para explicar grupos específicos no
medievo são de fato válidas. Classificar a Inglaterra anglo-escandinava ou
Al-Andaluz no século X como um amálgama ou fruto de um simples hibridismo é
desconsiderar o processo de interação entre grupos distintos e relativizar sua
complexidade.
O que torna um indivíduo ou um grupo
franco, bretão, moçárabe, etíope, sassânida como tantas vezes empregamos esses
vocabulários? O que o torna cavaleiro, mercador, herege, sodomita, judeu? A
revisão dos conceitos adotados deve sempre fazer parte do exercício do
historiador. O sentido das palavras não são dotados de vida própria e
contextualizar seu surgimento e propósito se faz mister, tanto para questões de
compreensão do posicionamento do pesquisador e de sua filiação teórica, quanto
para não incorrer na banalização do seu uso. [Silveira, 2016 p.49]
História
Global, periodização do tempo e “desocidentalização” da História
Tempo e espaço não são meros
coadjuvantes no processo histórico, desempenhando o papel de cenário – onde e
quando uma narrativa se passa. Constituem-se como elementos fundamentais que
são responsáveis por conectar pessoas, ideias, bens materiais, dentre outros.
Partindo de outra perspectiva teórico-metodológica a respeito do que esses dois
componentes, podemos repensar também a maneira como lidamos com essas
categorias na nossa prática historiográfica e no Ensino de História.
A periodização da História – e
consequentemente os reflexos gerados no seu Ensino – estão marcados por
episódios considerados expressivos à luz do Ocidente. A nossa divisão
tradicional, por exemplo, em quatro grandes períodos (Idade Antiga, Idade
Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea) remete a momentos considerados
cruciais para o mundo ocidental: o colapso do Império Romano do Ocidente (476),
o Renascimento (século XIV), a Revolução Francesa (1789), a Revolução
Industrial (século XVIII). Nosso objetivo não é desmerecer ou diminuir a
importância da periodização do tempo, haja vista que não há como fazer pesquisa
na área deixando de lado a organização como tempo histórico, mas atentarmos que
tais marcos não são puros e naturais e que se ordenam a partir de construções
narrativas.
Nos últimos vinte e cinco anos, muito
tem se discutido sobre novos arcabouços metodológicos e conceituais para o
estudo da história, dos quais História Cruzada, Histórias Conectadas, História
Transnacional e História Global são apenas alguns desses exemplos. No caso
específico da História Global, uma série de obras, seminários, grupos de
pesquisas e periódicos organizaram suas pesquisas a partir desse novo paradigma
historiográfico. Em síntese, pode-se afirmar que a História Global baseia-se em
duas principais características: superar o nacionalismo metodológico como
principal forma de análise das sociedades e evitar o eurocentrismo/ocidentalismo.
[Santos Júnior; Sochaczewski, 2017,p. 491] No entanto, o que essa modalidade
historiográfica traz de novo em comparação com a chamada História Universal? Em
seu artigo Experiências do tempo: da
história universal à história global?, o historiador francês François
Hartog afirma que enquanto a primeira tendeu a naturalizar ou absolutizar a
história da Europa – a ponto de transformá-la num parâmetro narrativo para toda
uma história da humanidade – a segunda privilegia a busca por conexões, numa
espécie de rede, na qual não há, consequentemente, uma visão única a seu
respeito. [Hartog, 2013, p. 170]
A ideia de uma História Universal,
que caminha inevitavelmente para o futuro, centrada na concepção de progresso,
tal como pensavam os intelectuais do século XVIII, não faz mais sentido nos
dias de hoje. Não obstante, a história não poderia ser apenas uma mera soma de
diversas conexões, como uma colcha de retalhos, prontos a serem costurados e
formar um desenho, numa espécie de quebra-cabeça. Não há um roteiro ou um
manual prévio o qual consultar, pois é o próprio historiador que (re)organiza
essas conexões, a partir de seus objetivos, objetos, recorte, teoria,
metodologia, conferindo novas formas de interpretação. Logo, a perspectiva da
História Global ultrapassa a simples ideia da busca por conexões entre culturas
e sociedades, contribuindo com um novo olhar sobre as sociedades como objeto de
estudo e para a tessitura de novas interpretações e narrativas.
As perspectivas da História Global,
sobretudo no que tange à desocidentalização da história, trazem à tona questão
da organização do tempo e a periodização. Para que a divisão em temporalidades
específicas faça sentido dentro da história, a mesma deve vir acompanhada de
dois conceitos fundamentais para a disciplina: as concepções de permanência e
mudança, pois a transição de um período para o outro deve estar precisamente
marcada pela dissolução de antigas características de um período e o início de
novas particularidades, sem perder de vista que, distintamente das ciências
naturais, as classificações na história refletem as escolhas de quem a analisa
e classifica, no caso, o historiador. [Green, 1992, p. 14] Sobre as relações entre a História,
construção de sua(s) narrativa(s) e o tempo, o historiador indiano A.
Gangatharan afirma que
“O conceito de periodização está
essencialmente ligado à nossa compreensão do passado e em como analisamos
metodologicamente o desdobramento dos eventos de um tempo para outro, de uma
época para outra. Desnecessário dizer que a objetificação do tempo a partir de
categorias reconhecíveis e com sua coesão interna oferece uma lógica
significativa para entender a natureza compreensiva dos eventos históricos,
correspondente ao seu contexto sociocultural”. [2008, p. 864]
Organizar o tempo em períodos diz
respeito a uma ferramenta metodológica para a disciplina, com o objetivo de
facilitar a análise do historiador frente ao seu objeto de estudo e, por mais
que se saiba que a divisão do tempo é uma operação arbitrária e baseada em
quesitos específicos, não seria possível fazer história sem tal variável em
nossa equação. Sem ele não seria possível delimitar os ritmos e as dinâmicas
que compõem as transformações na sociedade.
A partir de uma teoria da mudança,
supõem-se que as épocas históricas devem exibir importantes continuações em
longo prazo, ao passo que as transições de um período para outro devam envolver
a dissolução de antigas continuidades e a construção de novas formas de
organização. Esse processo, entretanto, não é isento de valores, haja vista que
toda teoria está baseada e reflete onde residem as prioridades do pesquisador.
[Green, 1995, p.
101] e cabe aí verificar quais os objetivos que se almeja atingir.
Logo, repensar a maneira como
demarcamos os períodos da nossa disciplina leva-nos a pensar questões
pertinentes de uma maneira global, afinal, se utilizamos os mesmos referenciais
de uma história europeia ocidental para abordarmos sociedades diversas, como
tal periodização pode ser fortuita? Ao utilizamos expressões como China
medieval, Japão feudal e Índia moderna, de que forma não estamos tentando
também encaixar modelos de uma história ocidental?
Nesse sentido, é preciso
“desocidentalizar” a história. A célebre obra Orientalismo: o Oriente como
invenção do Ocidente, de Edward Said, ainda é um dos principais fundamentos
na discussão e na compreensão das representações ocidentais acerca do Oriente.
Ora um local de abundância e exótico, ora caótico e incoerente, a forma como os
ocidentais compreendem-no nada mais é do que fruto de uma invenção europeia,
influenciada, principalmente, pelas visões do imperialismo britânico e francês
e reproduzidos posteriormente. [Said, 1990, p. 14-15]
Ao desnaturalizar os conceitos de
Oriente e Ocidente, Said evoca sua construção enquanto um fato político,
rompendo com a ideia de que se tratam de entidades geográficas, culturais e
históricas pré-determinadas. O intelectual britânico-palestino completa sua
ideia afirmando que o orientalismo não seria uma mera fantasia da Europa sobre
o Oriente, “mas um corpo criado de teoria e prática em que houve, por muitas
gerações um considerável investimento material.”. [Said, 1990, p. 18]
(Re)construindo
novas abordagens para o Ensino da Idade Média
Como pensar ou aplicar pressupostos
epistemológicos dos estudos pós-colonialistas e dos paradigmas da História
Global na medievalística e no Ensino de História Medieval? A começar, a
reflexão sobre o próprio nome atribuído ao período – Idade Média –, o qual
reforça aspectos da colonização do tempo. Por não partir de uma perspectiva própria
do ou sobre o período, mas de autores da chamada Modernidade, sobretudo do
contexto do movimento do Renascimento, o período medieval já nasce colonizado.
A ideia de Modernidade vem dessa forma associada a uma visão positiva, a uma
perspectiva mais ampla e ao anseio pela mudança, numa espécie de contraponto ao
mundo medieval, retrógrado e obscuro.
Apesar de recorrentemente
problematizado pelos medievalistas, o vocábulo "Idade Média" não foi
substituído, repensado ou readotado e que se referir a uma Idade Média
pós-colonial seria, no mínimo, um oxímoro, para não dizer um anacronismo. [Cohen, 2000, p. 4]
Desde a maneira como os currículos nas instituições de ensino superior estão
estruturados à divisão por disciplinas ainda em esquemas bastante tradicionais
e que remontam uma história dividida em quatro grandes eixos cronológicos
(Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea), pode-se atestar como nossa
principal forma de concepção e de organização da passagem do tempo ainda é
composto por elementos de uma tradição, digamos, colonizadora.
Entretanto, mesmo ainda presos a essa
organização, tal assertiva não significa que os historiadores abstiveram-se de
debater, propor, repensar e dialogar com outras áreas do saber para questionar
os limites que a organização de um tempo cronológico impunha à nossa
disciplina. Ao tomar consciência de que tanto o tempo quanto a própria história
foram alvo da colonização, não fomos inertes às discussões, nem permanecemos
obcecados com a objetividade de que as fontes documentais eram dotadas de vozes
próprias, prontas para revelar o que tinham a comunicar. No caso específico da
medievalística, os pesquisadores também contribuíram dentro desse processo.
Ao escrever sobre a descolonização do
Ensino de Idade Média, Macedo aborda-a como uma crítica ao ponto de vista que
parte da própria Europa, a partir da ideia de centro e periferia. Enquanto
muitas vezes os conteúdos lecionados nas instituições de educação básica focam
nos recortes geográficos que correspondem aos atuais Estados de França,
Inglaterra, Alemanha e Itália, tendem a negligenciar territórios considerados
de segunda importância, como Península Ibérica, os Bálcãs ou o Leste Europeu,
por exemplo. [Macedo, 2009, p. 115] No caso específico da Península Ibérica,
faria até mais sentido, tendo em vista que, como um país colonizado por
Portugal, somos herdeiros dessa tradição ibero-americana.
A descolonização abordada por Macedo,
portanto, ainda está centrada em visões tipicamente eurocêntricas, muito embora
o autor proponha um olhar mais atento a algumas questões como a convivência
entre cristãos, muçulmanos e judeus na Espanha medieval, a qual proporcionaria
a discussão de temáticas como intolerância e liberdade religiosa, conflitos
étnicos e as relações com o Outro. [Macedo, 2009, p. 116]
Apesar de uma proposta bastante
válida, gostaríamos de avançar mais no debate. Vislumbramos a necessidade de
novos referenciais teóricos e metodológicos que nos auxiliem na maneira como
enxergamos e entendemos a Idade Média, a fim de assentar as bases de sua
(re)construção no que tange ao Ensino de História Medieval.
A primeira perspectiva versa sobre a
concepção de temporalidade na história. Considerando que tanto as organizações
do tempo quanto da história também são alvo de um processo de colonização,
pautado em disputas de poder e tensões políticas e, portanto, nunca neutros, o
tempo não é um objeto inocente e inerte aguardando ser escavado e desvendado
pelo historiador. Tendo em vista que a
Idade Média surge dentro dessa perspectiva já colonizada, ausente de voz
própria quanto à sua temporalidade, mas apenas confinada a metade entre dois
outros períodos, os estudos medievalísticos buscaram aprimorar sua capacidade
de se reinventar. A compreensão de que a disciplina foi forjada no seio da
chamada Modernidade gerou uma espécie de trauma, ao mesmo tempo em que
possibilitou alianças trans-históricas e transformações recíprocas [Cohen, 2000, p. 5],
como uma forma de superar esse “trauma”.
O passado não é estático e passível
de investigação como um mero objeto de estudo – ou ao menos não deveria ser. O
Ensino de História Medieval deve permitir analisar as relações entre
temporalidades distintas para além da perspectiva de uma mera relação de
alteridade, mas como um passado que descortina um presente para novas
possibilidades num futuro.
Na introdução da obra organizada pelo
acadêmico estadunidense Jeffrey Jerome Cohen, The Postcolonial Middle Ages [Palgrave Macmillan, 2000],
o autor questiona em que e com o que os estudos medievísticos podem contribuir
dentro da abordagem pós-colonialista. Como uma Idade Média colonizada, que
corresponde a um tempo longínquo - se comparada com o próprio fenômeno do
neocolonialismo no século XIX - pode auxiliar nos estudos pós-colonialistas
dentro do Ensino de História?
A resposta vem na forma de cinco
temáticas: 1) Abandonar os modelos explicativos generalizantes; 2)
Desnaturalizar as concepções de verdade dentro da disciplina, geralmente
vinculados a projetos de poder; 3) Desestabilizar identidades hegemônicas, no
que concerne a etnias, orientação sexual, religião, classe, idade, dentre
outros; 4) Relativizar a posição dominante do cristianismo dentro da sociedade
medieval; 5) Descentralizar a Europa e reconfigurar geograficamente o mapa da
Idade Média ao incluir Ásia, África e o Oriente Médio. [Cohen, 2000, p. 6-7]
Os estudos sobre identidade auxiliam
nessa visão de uma Idade Média a partir da alteridade. Conteúdos antes
identificados como marginalizados, tais como o incesto, masoquismo, estupro e
travestismo, são agora reintroduzidos como objetos importantes nos estudos
medievísticos, não apenas com o objetivo principal de expandir, enriquecer ou
complexificar nosso entendimento sobre a cultura medieval, mas para a
compreensão de que foram categorias de análise excluídas na representação
medieval e também das nossas representações acerca da Idade Média. [Freedman;
Spiegel, 1998, p. 699]
Quanto às possibilidades de visões
que essas novas abordagens proporcionam, ao analisar temáticas do gênero,
devemos rejeitar a ideia de que se tratava de uma visão alternativa sendo
meramente reprimida, excluída ou abandonada, substituindo-a por um campo mais
amplo de possibilidades, negado durante o momento de estabelecimento de
representações. [Freedman;
Spiegel, 1998, p.700] Como foram negligenciadas como
escopo da medievalística tradicional, tendemos a analisá-los como ausentes ou
marginais dentro da sociedade medieval, como se houvesse uma Idade Média
oficial e outra excluída.
Entretanto, de todas as assertivas,
as três primeiras cabem não apenas ao estudo da Idade Média, mas àqueles
circunscritos a outras temporalidades. Os grandes modelos explicativos tendem a
estabelecer visões reducionistas, ao tentar encaixar os olhares sobre um objeto
a partir de um viés homogeneizante. Como exemplo, podemos incluir como a
historiografia tradicional francesa abordou temas como o sistema feudal, na
tentativa de fazer dele um modelo explicativo que corresponde aos territórios
administrados pelos carolíngios e depois “exportado” pelos normandos para a
Inglaterra no século XI como presente em outras regiões do continente de forma
adaptada ou modificada.
Focaremos aqui nas duas últimas, pois
julgamos serem as maiores contribuições dentro dos estudos sobre o medievo. A
alusão a uma Idade Média dominada pela Igreja e pelo cristianismo, sem levar em
consideração que havia outras formas de religiosidade concomitante ao mesmo. O
discurso eclesiástico, apesar de dominante na documentação escrita produzida ao
longo do medievo, não era a única forma de concepção, leitura e interpretação
de mundo e analisá-lo a partir das conexões com islamismo, judaísmo e religiões
pré-cristãs é mais producente do que explorá-los apenas pelo viés do discurso
cristão. Havia formas heterogêneas de cristianismos, frequentemente em
disputas, até sua tentativa de sistematização e unificação em torno de um ideal
de cristandade presente nas Reformas Gregorianas (1050-1150).
Quanto às reflexões relativas às
representações geográficas e o espaço na Idade Média, Kathleen Biddick elucida
de que forma o espaço e a cartografia também foram colonizados ao longo do
século XV e em como isso contribuiu para a concepção de mapas produzidos nos
século seguinte, já sobre a égide do chamado Mundo Moderno. Ao analisar
projetos de cartografia de finais da Idade Média, a historiadora americana
deparou-se com duas tradições distintas. A primeira delas corresponde aos
chamados mappae mundi (cartografia
responsável pela representação do século XII ao XV) e mais racional e
"moderno" mapa ptolomaico – em referência a Claudio
Ptolomeu (90-168), considerado pai da cartografia – que se tornou predominante
na Europa Ocidental a partir no século XV.
A concepção de mapa que adotamos nos
nossos dias não está pautada nos mesmos elementos para o homem medieval. A
cartografia não existia enquanto uma ciência ou uma disciplina no período e a
produção de mapas estava diretamente vinculada a aspectos do universo clerical.
Os mappae mundi não tinham por
objetivo apenas a descrição do espaço ou determinar a localização de um
território, mas, antes de tudo, correspondia a uma representação de mundo,
seguindo regras muito particulares, com informações geralmente oriundas de
obras dos padres da Igreja, da narrativa bíblica e de fragmentos de informações
da Antiguidade. [Deus, 2001, p. 178] Os mappae
mundi tendem a ser identificados como narrativas para fins didático e
simbólico, representando a fé a partir versões morais situadas entre a Criação
e o Juízo Final, enquanto que as instruções de Ptolomeu quanto à compilação dos
mapas eram estritamente prática e mais racionais.
O mapa de Hereford, produzido
provavelmente entre os anos de 1276 e 1285 e vinculado à catedral da cidade,
situada nas Midlands Ocidentais, é um
dos mais famosos por ser o maior em extensão que tenha sobrevivido aos nossos
dias. Um dos aspectos particularmente interessante desse mapa está, na
vinculação dos judeus aos povos do Gog e Magog, presentes na tradição
apocalíptica e referenciados na cartografia como Outro [Soares, 2012, p. 220] e
cabe ressaltar que isso era algo relativamente comum na cartografia medieval.
Com o dos estudos humanistas, os mappae mundi abriram espaço aos mapas
ptolomaicos, os quais começaram a ganhar espaço a partir do século XV. A
primeira tradução do grego para o latim da "Geografia" de Ptolomeu
foi entre os anos de 1405-09, como um guia prático para construção de mapas – baseado
em longitude e latitude – e composto de uma lista dessas coordenadas e uma
relação de oito mil nomes relacionados a regiões imperiais no mundo tardo
antigo. [Hoogvliet,
2002, p. 8]
Biddick destaca em sua obra que, a
partir do século XV, os estudos humanísticos procuraram excluir a participação
dos judeus no processo de produção das interpretações a respeito desses
espaços, enquanto as posições importantes dentro estudos hebraicos passaram a
ser ocupadas por classicistas [1998, p. 287], o que se seguiu a recorrente
adoção do alfabeto latino em sua escrita buscou excluir intelectuais judeus da
especialidade dos estudos hebraico-cristãos.
Não apenas o tempo e sua
representação foram colonizados, mas o espaço e a cartografia também. Analisar
os mapas produzidos no período medieval não inclui apenas descentralizar a
Europa e incluir também Ásia, África e o Oriente Médio, - geralmente
representados como meras periferias do mundo medieval - e compreendê-los
como participantes e intercambiantes de um mundo largo e ao mesmo tempo
fragmentado em suas localidades e especificidades geográficas. Tal estudo
desloca a perspectiva de regiões caracterizadas como periferias, são
identificadas a partir de lógica interna, como seus próprios centros.
É necessária a compreensão também de
como esses mapas reproduzem discursos e interpretações que remetem a
colonização do espaço, das representações cartográficas e de quem está
autorizado a produzi-las. A cartografia na época também não estava associada a
objetividade ou neutralidade e sua produção estava marcada também por relações
de poder, como no exemplo da exclusão dos judeus no século XV.
Considerações
finais
Atividades de pesquisa e ensino não
vêm dissociadas. As investigações sobre a medievística refletem nossa forma de
pensar a história e as teorias e ferramentas de que dispomos em nosso fazer
historiográfico. O caminho para o medievalista desconstruir os pré-conceitos e
estereótipos dentro da sua disciplina é árduo, pois, se a Idade Média não foi
uma Era de Ouro, tampouco foi um período de trevas. É preciso estudá-lo a
partir dos objetos recortados e dos objetivos acadêmicos os que se almeja
alcançar.As reflexões advindas dos estudos pós-colonialistas reforçam o olhar
cuidadoso acerca dos objetos de investigação do medievo, da importância de uma
análise a partir de dinâmicas próprias e desnaturalizando conceitos
cristalizados na medievalística.
Contudo, é inegável que aquilo que o
período de que denominamos de Medievo não correspondia a espaços fechados,
ausentes de conexões e trocas das mais diversas naturezas. Tampouco o mundo
medieval estava restrito apenas ao continente europeu, sobretudo à sua porção ocidental.
Tomar consciência dessa dimensão espacial mais ampla permite vislumbrar uma
Idade Média a partir das conexões entre Europa, Oriente e África, bem como
considerar que esses elos não devem ser analisados de uma perspectiva
eurocêntrica. Nesse aspecto, os pressupostos teórico-metodológicos da História
Global endossam quanto à observação das trocas culturais, rompendo o paradigma
ocidental e eurocêntrico e relativizando os conceitos de Oriente e
Ocidente.
Deste entroncamento dos estudos
pós-colonialistas e dos pressupostos metodológicas da História Global, podemos
vislumbrar novas perspectivas, objetos, recortes e horizontes dentro dos
estudos medievais.
Referências
Isabela Albuquerque é Professora
Adjunta do Curso de História da Universidade de Pernambuco – Campus Garanhuns e Doutora em História
Comparada pela Universdade Federal do Rio de
Janeiro. E-mail para contato: isabela.albuquerque@upe.br
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Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirProfessora, no Brasil como citou inicialmente, não houve vivenciou a idade Média. Mas em seu processo colonizador, mesmo já ter tido fim o período medieval, vemos diversas ações consideradas medievais. No caso, os anos de colonização do país, recebe influências da práticas medievais?
ResponderExcluirMarcos Rossiny Leandro
Olá Marcos Rossiny Leandro,
ExcluirObrigada pela pergunta!
Sim, podemos dizer que sofremos uma influência da Idade Média a partir da colonização portuguesa - na verdade, boa parte do continente americano "bebe" dessa tradição ibérica, herdeira dos tempos medievais. Alguns autores trabalham ainda com o conceito de medievalidade, presente em aspectos da cultura popular. Aqui no Nordeste há alguns estudos a respeito.
Sua pergunta promove um debate que podemos incluir a discussão sobre os limites dos tempos medievais. Teriam sido eles encerrados em 1453 e, portanto, a chegada das expedições castelhanas e portuguesas já foi fruto de um mundo "moderno"? Jerôme Baschet, por exemplo, afirma que não e a discussão sobre a "longa Idade Média" de Jacques Le Goff também é reforço de que é deveras complexo estabelecer um fim estanque para os tempos medievais.
Professora, como a senhora avalia o avanço dessa história descolonizada em outras medievalísticas? Aqui no Brasil, a minha impressão é que ainda estamos muito atrelados aos modelos teóricos e metodológicos da escola francesa, talvez pela dificuldade de tradução de material, enfim... E como está a perspectiva de medievalísticas trasculturais, onde os objetos de análise estão inseridos em escalas maiores de inter-relações?
ResponderExcluirLuana Barbosa Miranda Souza
Olá Luana Barbosa Miranda Souza,
ExcluirMuito obrigada pela pergunta! Extremamente pertinente e interessante para pensarmos essas relações.
Concordo com você que a influência de um modelo francês ainda se faz muito presente não só na medievalística, mas nos cursos de História enquanto um todo, embora, nos últimos anos estejamos vivenciando um diálogo maior com a academia anglo-saxônia e alemã, bem como a influência de estudos orientais.
O uso de diferentes modalidades de análise como as histórias cruzada, transnacional, conectada e global, por exemplo, também merecem destaque nesse processo de descolonização, pois propõem um rompimento de paradigmas, ao analisarem as sociedades humanas para além de conceitos, recortes e visões pré-estabelecidas. Dentro da historiografia brasileira, cito os trabalhos da professora Alinde Dias da Silveira, professora da UFSC e do professor Otávio Luiz Vieira Pinto, professor de História da África da UFPR. Ambos centram suas pesquisas a partir de pressupostos metodológicos que propiciam pensar as conexões com a África e o Oriente, por exemplo. Outro aspecto que merece destaque são os estudos sobre Península Ibérica, principalmente os que contrapõem Al-Andaluz e as relações entre cristãos, mouros e judeus.
Muito interessante a reflexão da prof. Isabela. De fato, refletir sobre a descolonização da história é de fundamental importância. A senhora apresenta no texto, que a forma de divisão da história em idade antiga, média, moderna... é de caráter colonizador, qual seria então, a outra forma de redividir os períodos históricos, sem ser nessa linha ocidentalizada ou eurocêntrica ?
ResponderExcluirMaximiliano Gonçalves da Costa
Olá Maximiliano Gonçalves da Costa,
ExcluirMuito obrigada pelas considerações e pela pergunta.
A meu ver, seria praticamente impossível substituirmos o nome Idade Média - a um nível institucional, pelo menos - por outro para analisarmos o período. Descolonizar a história medieval e o ensino de história medieval passa por problematizar a forma como construímos o conhecimento acerca do período medieval e isso vai além de apenas questionar o nome que lhe atribuíram. A reflexão de que, ao alocarmos nossas pesquisas e nossos objetos de estudo como "antigos", "medievais" ou "modernos", não percamos de vista de que a dinâmica das sociedades humanas é muito mais complexa e não está restrita a esses rótulos.
Quanto à desocidentalização, a principal crítica é que as sociedades humanas devem ser analisadas a partir do que elas representam e não como um modelo pré-frabricado das sociedades europeias. Um exemplo de como isso foi feito a partir de um viés ocidental, pode ser identificado na organização da história da Índia, em 1817: Antiguidade Hindu, Islâmica Medieval e Moderna Britânica e isso, inclusive, tem sido alvo de debates dentro das universidades. (GANGATHARAN, 2008, p. 863)
Professora Isabela, você mencionou essa mudança no estudo de História medieval acerca dos preconceitos que a disciplina sofreu ao longo das pesquisas no Brasil, e que no meio acadêmico já houve certo avanço em não considerar mais a idade média como idade das trevas. No entanto no ensino fundamental ainda persiste nos livros didáticos essa ideia preconceituosa do período medieval, como a própria nomeclatura idade média que estaria no meio, e posteriormente o período moderno, que destaca o renascimento que seria uma revolução das artes. O meu questionamento é: Por que os livros didáticos não apresentam quase nada das artes no período medieval? Por que essa lentidão das pesquisas acadêmicas chegarem no ensino de História nas escolas?
ResponderExcluirProfessora Isabela, você mencionou essa mudança no estudo de História medieval acerca dos preconceitos que a disciplina sofreu ao longo das pesquisas no Brasil, e que no meio acadêmico já houve certo avanço em não considerar mais a idade média como idade das trevas. No entanto no ensino fundamental ainda persiste nos livros didáticos essa ideia preconceituosa do período medieval, como a própria nomeclatura idade média que estaria no meio, e posteriormente o período moderno, que destaca o renascimento que seria uma revolução das artes. O meu questionamento é: Por que os livros didáticos não apresentam quase nada das artes no período medieval? Por que essa lentidão das pesquisas acadêmicas chegarem no ensino de História nas escolas? Desconsidere o outro, pois não assinei. obrigado
ResponderExcluirPedro Henrique Sassone Cupertino
Oi Pedro Henrique Sassone Cupertino,
ExcluirObrigada pela sua participação e pela pergunta.
Esse descompasso entre academia-educação básica não é de hoje, tampouco uma prerrogativa dos estudos medievísticos. Em outros períodos e temáticas também observamos a reprodução de visões estereotipadas. Entretanto, nos últimos 10 anos, tenho observado em algumas obras direcionadas à educação básica um cuidado maior ao aproximar ensino de História e pesquisa.
A narrativa da maioria dos livros didáticos, infelizmente, ainda está muito atrelada como fio condutor à formação do sistema capitalista e, dessa forma, corrobora com a ideia do "fim" do período medieval e o início da modernidade, como uma maneira de demonstrar as bases já presentes para a construção desse sistema.
Como o foco da educação básica não é o estudo do período medieval em si, as artes acabam sendo um tema, entre tantos outros que também poderiam render debates interessantes para essa desconstrução da Idade Média na educação básica, negligenciado. A maioria dos livros didáticos abordar muito brevemente o Renascimento Carolíngio e depois saltam para o gótico a partir do século XII.
Muitas obras historiográficas sobre espaços não europeus reforçam interpretações e moldes ocidentalizantes. Como isso afeta a compreensão da história desses espaços? E como o pesquisar pode lidar com isso?
ResponderExcluirProfessora Isabela, obrigada pelo texto necessário e importante!
Karolina Santos da Rocha.
Olá Karolina Santos da Rocha,
ExcluirObrigada pela sua pergunta.
Ao buscarmos padrões ocidentais para o estudo de outras sociedades humanas, acabamos por estabelecermos a Europa ocidental como principal pilar e referência.
As sociedades humanas devem ser analisadas a partir do que elas representam dentro do seu contexto específico e não como um modelo pré-fabricado das sociedades europeias. Um exemplo de como isso foi feito a partir de um viés ocidental, pode ser identificado na organização da história da Índia, em 1817: Antiguidade Hindu, Islâmica Medieval e Moderna Britânica e isso, inclusive, tem sido alvo de debates dentro das universidades. (GANGATHARAN, 2008, p. 863). A reflexão que fica é: será que a única forma de compreender e periodizar a história da Índia passa, necessariamente, pela mesma leitura que a divisão da história ocidental (Antiga, Medieval e Moderna)? Certamente, não.
Para lidar com esse problema, o historiador deve a todo momento estar atento quanto aos recortes cronológicos e geográficos que utiliza, quanto aos conceitos a partir dos quais aborda seu objeto de estudo, como recorta o referido objeto, a fim de se certificar de que os elementos que elegeu para sua pesquisa são pertinentes para o estudo daquela sociedade.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirProfessora Isabela Albuquerque, gostei muito da reflexão que seu texto possibilita. Faço alguns comentários de minha vivência, infelizmente vejo professores de História inteligentíssimos, com uma visão atualizada das perspectivas da História mas que ainda usam dessa visão simplista do Medievo, contribuindo até para a disseminação de estereótipos como "Idade das Trevas" relacionando tal conceito com elementos da atualidade etc.
ResponderExcluirDurante minha graduação em História, tive contato com a coleção de História da África da UNESCO em uma disciplina optativa. Considerei a disciplina bastante relevante tendo em vista todas as outras com recorte Antiguidade e Medievo mais voltadas para a Europa, todavia, ainda sinto um despreparo quanto às abordagens de África no tocante à Idade Média. Para além desses comentários, o texto fala sobre nossa periodização e da inclusão da África e de demais territórios nos estudos Medievais, fugindo da ideia do eurocentrismo. Quais são as perspectivas para essa inclusão e desenvolvimento de estudos acadêmicos voltados para uma Idade Média plural? Teríamos mais falta de oferta desses temas e possibilidades de estudos e abordagens do Medievo ou de demanda?
Benigna Ingred Aurelia Bezerril
Olá Benigna Ingred Aurelia Bezerril,
ExcluirObrigada pelas considerações e pela sua pergunta.
Infelizmente, essa disseminação da Idade Média como Idade das Trevas, mesmo que de modo inconsciente, ainda é reproduzida por muitos colegas de profissão. Recentemente, deparei-me com uma postagem nas redes sociais que comparavam os tempos de pandemia que estamos vivenciando, a negação da ciência e a ignorância, como sinônimos dos tempos medievais e que depois de tudo isso vivenciaríamos a Modernidade. Observei que diversos historiadores compartilhavam a referida postagem, atestando a mesma como verídica.
A meu ver, a inclusão de tópicos e temas que propiciam o diálogo com a África e o Oriente tende a aumentar entre as próximas gerações de historiadores. Isso não significar necessariamente estudar uma África ou um Oriente medievais, mas compreender que esses espaços fazem parte das trocas, conexões e circulações durante o período medieval. Isso já é uma realidade dentro dos centros de estudos da Europa e dos EUA e observamos uma tendência similar aqui no Brasil também. Outra prova disso, é que diversas universidades passaram a incluir temas voltados para a história oriental em seus processos seletivos. Contudo, para estudantes que iniciam seus estudos acaba sendo mais difícil acesso a esses temas, pois a oferta de disciplinas nas universidades brasileiras voltadas para África e Oriente tende a ser menor do que aquelas referentes ao mundo ocidental. Entretanto, há muitos nichos, temáticas, problemas a serem abordados por essa perspectiva transcultural.
Instigantes suas ponderações, professora. Minha questão é mais um incômodo que tenho quando leio textos tão potentes e sinto uma frustração enorme no exercício da docência não só na edução básica como no ensino na graduação. Percebo que ainda existe um fosso entre a pesquisa acadêmica, o ensino na graduação e o ensino de história na educação básica. Na graduação, muitas vezes na construção de projetos pedagógicos de cursos somos levados a nos encaixar nos paradigmas acadêmicos para conseguirmos ter nossas propostas de implementação de cursos aprovados pelos nossos pares. No ensino básico ainda estamos atrelados a história eurocêntrica centrada em periodizações. Seu texto nos traz reflexões profícuas nesse sentido, a partir dos estudos pós colonialistas. A senhora considera que para além dos avanços no debate teórico, essas mudanças podem ser vislumbradas no cotidiano dos cursos de graduação e do ensino básico?
ResponderExcluirUma perspectiva relevante na atual ocasião para debates e opiniões sobre o ensino de História Medieval, clara Profª. Isabela. Logo, em propor sobre a descolonização desse ensino nas visões acadêmicas e fora delas. Debater ainda mais o valor desse ensino como fator da pós-colonização na Idade Média ser eurocêntrica e que não fixou em outras regiões ou objeto de análise histórico, acabaria ter ações da real expansão dessa temporalidade no resultado que “ocidentalismo” como pontos essenciais nas visões europeias. Assim sendo, na sua visão, essas tendências como novas perspectivas, objetos, recortes e horizontes que visam uma abrangência nas metodologias e teorias quanto ao ensino de História, cabe ser viável a partir das tendências historiográficas em achar essas soluções?
ResponderExcluirRenato Rodrigues do Nascimento
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ResponderExcluirPrezada Isabela Albuquerque,
ResponderExcluirQuero lhe parabenizar pelo texto, bem escrito e sofisticado ao entrecruzar o ensino de História com discussões relacionadas ao medievo e teorias como a perspectiva dos estudos pós-coloniais e a História Global. Muito me agradou o seu texto, pois já ministrei algumas vezes a disciplina de História Medieval e muitos dilemas me perpassaram para contemplar outras experiências históricas para além da clássica Idade Média ocidental.
No Brasil são poucas as disciplinas de medieval que transpõem o Ocidente, quando ocorre aparecem como a História medieval do Oriente ou Oriental, mas não conheço cursos e disciplinas voltados para a Idade Média africana – talvez por fazer certo tempo que não ministro a disciplina. Além do que, em alguns casos até as disciplinas voltadas para o Oriente ladeiam o Ocidente, contemplando o Império Romano no Oriente, a Igreja no Oriente, as Cruzadas... temas proximais já conhecidos.
Gostaria de contar mais com seus ensinamentos e reflexões lhe perguntando sobre propostas temáticas e referências para se trabalhar os tempos medievais a partir da África em conexão com outros regimes de historicidade, na conexão, na circulação, nos intercâmbios...
Atenciosamente,
Roberg Januário dos Santos
Olá Isa, tudo certo?
ResponderExcluirA proposta de uma descolonização da história medieval é interessante e sem dúvida necessária. Os exemplos apresentados, no entanto, pouco dão conta de uma contribuição "brasileira" ao debate. Mesmo quando autores brasileiros tratam da problemática do "colonialismo intelectual", o fazem a partir de premissas "importadas", ou seja, a partir de uma perspectiva alternativa, mas igualmente não-nativa. E aqui me chama a atenção que, se o pós-colonial surge no campo literário, por que não olhar para a contribuição do campo literário para o caso brasileiro? Afinal, muito antes que na Ásia ou na África se discutissem questões do tipo, no Brasil se lançavam manifestos de identidade intelectual e artística como o antropofagismo e o manifesto pau-brasil. Não seria de buscar ali as inspirações para um pós-colonialismo à brasileira, uma proposta de "estudos medievais antropofágicos"?