Guilherme Tavares Lopes Balau


OS USOS DA ESCRITA DA HISTÓRIA CAROLÍNGIA EM SEU TEMPO



Quando se fala sobre a consciência histórica em uma dada experiência do tempo, um conjunto de fatores entra em contato com o ato de escrever a história face à memória do passado e à recepção dos sujeitos históricos. A consciência histórica é um ponto de partida significativo à concepção das pessoas sobre os fenômenos da realidade, e a escrita da história representa uma resposta aos interesses da atualidade em relação às expectativas do passado. “Trata-se do interesse que os homens têm – de modo a poder viver – de orientar-se no fluxo do tempo, de assenhorear-se do passado, pelo conhecimento, no presente” [Rüsen, 2001, p. 30]. Através disso o estudo da escrita da história pode analisar a valorização de conceitos e atribuição de valores nas ideias do período estudado.

A contação de histórias, a memória sobre a própria história, serve de diversas maneiras aos indivíduos envolvidos em sociedade. A título de exemplo, a identidade histórica de um povo baseia-se na sua narrativa sobre o próprio passado, legitimando e colocando em continuidade o feito de antepassados até a constituição do presente, pesando sobre a contemporaneidade a permanência de valores tradicionais, em um fenômeno que cria o conceito de si perante outros, a ipseidade, “Wir-Gefühl” [Innes, 2004], de um povo. Há de se deduzir, portanto, a importância do conteúdo da história sobre si, as relações de poder envolvidas na seleção e enquadramento da memória, em que terá presença a legitimidade das reivindicações sobre o poder político no tempo presente. Nesse sentido, a escrita da história possui boa parte de sua raison d’être ancorada nos interesses que surgem de sujeitos que vivem sua experiência do tempo. Ainda assim, não se deve encarar a escrita da história como unicamente um espaço de luta de poderes monodimensional. Em qualquer período histórico, os sujeitos buscam formas de entretenimento, leituras da realidade que compreendam sua visão de mundo e interpretações de fenômenos do mundo. Segundo Jörn Rüsen, a narração histórica é uma maneira de atribuir sentido à experiência do tempo, onde o produto é a história:

“A narração é um processo de poiesis, de fazer ou produzir um tecido de experiência temporal entrelaçado de acordo com a necessidade de orientar a si mesmo no percurso do tempo. O produto deste processo de narração, o tecido capaz de orientar de tal maneira, é ‘uma história’. A respeito da ameaça da morte, a narração transcende os limites da mortalidade em direção a um horizonte mais amplo de ocorrências temporais significativas. Essa é uma das verdades essenciais nos contos de Mil e Uma Noites. Scheherazade sabe que narrar é superar a morte; a narração é um ato de de-mortificação da vida humana” [Rüsen, 1987, p. 88, tradução livre].
Dessa maneira, a ação de lidar com a experiência do tempo pelo discurso histórico, como fator antropológico, faz parte da transcendência em relação à mera sobrevivência no tempo. Posto como aspecto importante da consciência humana, a possibilidade de moldar a memória do passado com expectativas do presente é fato basilar para se compreender a escrita da história especialmente quando se trata de uma história de cunho “oficial”. Sua possibilidade estende-se à legitimação do poder e monumentalização da identidade histórica. Pensando na historiografia Carolíngia, o principal aspecto a ser abordado é a manutenção da memória de Carlos Magno [742-814], primeiro imperador do ocidente desde a deposição de Rômulo Augusto. O governante franco é representado como um ideal de príncipe e portador dos valores da cristandade, modelo a ser aspirado por seus descendentes.

O primeiro biógrafo do governante foi Einhard, cortesão carolíngio que acompanhou presencialmente boa parte da história que escreveu em sua obra ‘Vida de Carlos Magno’ [Vita Caroli Magni]. Em sua obra, escrita na segunda metade da década de 820, pouco tempo após a morte do imperador [Collins, 1998], o biógrafo traça aspectos da vida do governante desde a deposição do último rei merovíngio através de um golpe de estado feito por seu pai, Pepino III, passando por suas conquistas militares nas regiões da Aquitânia, Lombardia, Bretanha, Espanha e Saxônia. Também seus grandes feitos políticos são descritos, como a Admoestação Geral de 789, que promoveu a padronização de ritos litúrgicos. As características mais pessoais de sua vida, como uma descrição de sua aparência [pouquíssimo confiável, pois a estrutura de sua obra é baseada na obra Vida dos Doze Césares, de Suetônio, e sua descrição imita as descrições dos imperadores romanos] e o testamento que legou sua herança aos descendentes figuram ao final da obra do biógrafo.

Também Notker, monge da abadia de São Galo, escreveu a obra ‘Feitos de Carlos’ [Gesta Karoli], já quase um século após sua morte, por volta de 887 [Ganz, 2008]. Neste caso, Notker escreveu a história de um Carlos Magno diferente face à obra de Einhard, exaltando suas virtudes divinas, o apresentando como uma legítima figura mítica, onde suas decisões ressoam em trovoadas e a história do reino ao império se entrelaça com a história bíblica e em continuidade direta com o Império de Roma. A estrutura de sua escrita é baseada em trechos anedóticos de fácil memorização. David Ganz, tradutor e organizador da obra de Notker para a língua inglesa, aponta que provavelmente foi escrita pensando no complemento à obra de Einhard, que ao final do século IX já havia se difundido e tornada instrumento padronizado de ensino da história Carolíngia em escolas monásticas [Ganz, 2008].

Além do escopo deste trabalho, obras paralelas foram escritas nos conventos regionais em formato de anais cronológicos, contribuindo à monumentalização da memória sobre o passado franco. O período de ascensão do Império Carolíngio contribuiu ao florescimento da cultura das letras e do humanismo romano, ancorado em figuras como Alcuíno de York e Smaragdus de São Mihiel, que contaram com o apoio do imperador para difusão do ensino nos monastérios e elaboração de textos de cunho político, teológico e educacional de maneira geral. Em 789, a capitularia da Exortação Geral [Admonitio generalis] emitida por Carlos Magno padronizou o canto litúrgico de acordo com os cânones da Igreja Católica pelo reino franco, fortaleceu o combate às heresias religiosas [como a adocionista] pela intensificação do trabalho administrativo letrado, o que por sua vez necessitou da difusão dos métodos de educação da tradição latina: “E que haja escolas para as crianças aprenderem a ler. Que, em cada bispado, em cada mosteiro, se ensinem os salmos, as notas, o canto, o cômputo, a gramática, e que haja livros cuidadosamente corrigidos” [citado em Wolff, 1973, p. 28]. Com isso, o fenômeno que ficou conhecido como ‘Renascimento Carolíngio’ abriu portas para o favor de grande parte do corpo eclesiástico da realeza franca. A partir disso, é possível compreender a tendência de exaltação por parte dos escritores das biografias de Carlos Magno. A monumentalização da história carolíngia no período é marcada pela vitória das virtudes cristãs sobre seus tirânicos inimigos seculares.

A disparidade entre a primeira biografia, escrita por Einhard, e a biografia escrita por Notker denota um aspecto primordial para se compreender o papel da historiografia no período. Diferenciando-se da pesquisa empreendida por historiadores através de métodos da ciência histórica na contemporaneidade, a historiografia medieval foi marcada por uma tendência mais direcionada à busca e compilação de fatos da tradição literária para inserção no corpus da obra intentada do que pela pesquisa em fontes disponíveis aos autores. Assim, a introdução de uma história primordial, ancorada na tradição letrada, para levar a um assunto mais contemporâneo servia aos propósitos do autor para justificar reivindicações de legitimidade. O que não quer dizer, no entanto, que havia uma ‘acriticidade’ na escrita da história política medieval – os autores baseavam-se em evidências factuais diversas para construir sua narrativa, tradição datável das Etimologias de Isidoro de Sevilha [Goetz, 2012], mas que os propósitos justificavam os vieses na seleção do conteúdo. “Os autores não somente “escreviam” a história, mas a usavam (e “abusavam”) com certos propósitos e objetivos, não apenas para explicar, mas também para justificar o presente”. [Goetz, 2012, p. 124, tradução livre]. Assim, Carlos Magno, coroado imperador pelo pontífice de Roma em 25 de dezembro de 800, fora colocado como sucessor, por intervenção divina, do ofício dos imperadores romanos, em uma demonstração do conceito de ‘transferência de poder’ [translatio imperii], nas primeiras linhas da obra de Notker:

“O todo-poderoso [que opera] sobre todas as coisas e dirigente de reinos e das eras, quando destruiu aquela maravilhosa estátua com pés de ferro ou de barro dentre os romanos, colocou a cabeça de ouro de outra estátua não menos memorável dentre os francos através do ilustre Carlos Magno” [Notker, I, citado em Ganz, 2008, p. 55, tradução livre].

A inserção dos feitos carolíngios na leitura da providência divina em direção ao fim da história centraliza o papel de seus agentes políticos, e denota sua legítima posse do poder frente ao meio social, religioso, político e militar. Sua obra fora escrita em homenagem a Carlos, o Gordo, que visitara o convento de São Galo em 883 e fora elevado a imperador, o último herdeiro vivo da dinastia, em 885. A obra de Notker deve ser interpretada à luz da tradição de escrita dos espelhos de príncipes, em que a obra apresenta ideais de governança, verdadeiros ‘livros didáticos de bons governantes’ [Fałkowski, 2008]. Carlos, o Gordo, como último governante carolíngio, deveria fazer valer face à tradição de sua dinastia. Dessa maneira, não à toa que Notker lhe dedica a obra – o passado figurava uma presença constante como parâmetro de referência e possuía um caráter moral semelhante à lei para os autores medievais. Além disso, como tradição na história medieval, grandes crônicas edificadoras do passado costumam acompanhar grandes crises – tanto religiosas como políticas. Sua intenção é justamente buscar no passado não tão remoto as fontes do poder legítimo carolíngio, em vista da necessidade de ação do governante.

E é nesse aspecto que reside algo que interessa abordar. A escrita da história por um autor deve levar em consideração dois aspectos, conforme apresentado por Hans-Werner Goetz: “é inevitavelmente baseada em um determinado conceito de história (Geschichtsbild) e uma determinada consciência histórica (Geschichtsbewusstsein)” [Goetz, 2012, p. 112]. A respeito do conceito de história, trata-se de uma noção que articula a informação do passado em uma representação mais palpável, aquilo que se imagina ocorrido de determinada maneira em um determinado espaço. Em relação à consciência histórica, figura-se o ponto chave para abordar a obra comentada enquanto artificio de representação da mentalidade do período. Para Goetz, a consciência histórica parte de uma consciência sobre a sensação de historicidade e de mudança histórica, indicando a noção de processo histórico e convicções ideológicas na construção do passado. Assim, a interpretação da legitimidade do poder carolíngio assenta-se na materialização da obra historiográfica como atestado dessa identidade histórica carolíngia, franca, cristã.

Na mesma medida encontra-se nas passagens da biografia escrita por Einhard a legitimação das identidades virtuosas do governante. A representação de Carlos Magno face às intempéries militares contra os Saxões, por exemplo, enaltece a cristandade face aos pagãos tiranos e barbarizados. Também na época de sua escrita, na segunda metade da década de 820, a moral carolíngia sofreu abalo a partir da reação eclesiástica e da nobreza franca às propostas centralizadoras e autocráticas de Luís, o Pio, levado a fazer penitência para restauração da ordem para com os condes e duques aliados do império [Heers, 1974]. Essencialmente, Carlos Magno foi colocado como parâmetro de referência ideal para Luís, e da mesma maneira que Notker colocaria meio século depois, a obra possuía um caráter de referência das virtuosidades de um governante.

Esse caráter da história medieval vai percorrer os séculos na forma de uma constante edificação do passado. A interpretação da palavra latina historia alude a diferentes conotações de sentido na atualidade, o que leva a ser necessária a consideração do significado que possuía no tempo de sua escrita. A história conforme atestada pelos autores do período leva em consideração a inserção das interpretações da realidade dentro do escopo de expectativas de sua vida cotidiana. O batismo do merovíngio Clóvis para a religião cristã, abandonando suas origens pagãs, o auxílio dos mordomos carolíngios à Igreja de Roma a partir de Carlos Martel, a suposta unção de Pepino III quando da deposição do último rei merovíngio, as reformas em prol da legitimidade da igreja sobre a cristandade ocidental e a própria unção, enquanto rei, e posterior coroação de Carlos Magno como imperador pelo pontífice de Roma e os subsequentes louvores desses atos nos cânones da historiografia posterior não são apenas atos simbólicos. A religião cristã possuiu caráter de detentora e difusora do conhecimento do período, em figuras como Orósio, Gregório de Tours, Isidoro de Sevilha, Paulo, o Diácono e demais. O corpus da intelectualidade medieval como um objeto de aproximação da ‘verdade’ a ser decifrada, em direção à interpretação da revelação divina e da providência é fruto dessa concepção fundamentalmente teológica que produziu a cultura letrada durante séculos após a difusão da cristandade. Por isso, pensar em história medieval não é apenas pensar em uma representação dos acontecimentos do passado, mas pensar no peso que carregava uma visão com esse filtro de atribuições simbólicas sobre a experiência e expectativas dos contemporâneos. Historia, portanto, poderia significar a narração dos eventos [res gestae], distintos da narração de ficções e a interpretação da literalidade da bíblia, em que a história é sua afirmação e continuação, apresentando os desígnios e vontades de Deus na providência divina, em direção à eternidade e ao fim da história [Goetz, 2012].

Considerações finais
Pensar a consciência histórica e seus múltiplos usos durante o tempo traz uma perspectiva multiforme em relação às possibilidades que o discurso opera sobre a concepção do Homem em meio à experiência da realidade. A análise dos historiadores sobre as concepções criadas na representação do passado demonstra grande fruto de análise para entendimento das realidades materiais e imateriais sobre o passado. Ao analisar as significações e como seriam concebidas em seu próprio tempo [o peso que as palavras possuem em seu contexto de utilização] possibilita um aparato intelectual de sensibilidade histórica que permite a crítica e a avaliação de valores impostos no discurso na experiência e sensação do tempo e do passado. Pensar a historiografia medieval, neste sentido, possui o peso de se pensar a ação humana e suas consequências multiformes sobre a vivência perante a imposição do poder na história, e isso é muito mais do que pensar a história como um acúmulo de fatos aglomerados pela permanência da cultura material através dos séculos. É dialogar, com auxílio da pesquisa daquilo que foi selecionado e legado pelo passado, às expressões humana em contato com sua experiência de viver e sofrer na história.

Referências
Guilherme Tavares Lopes Balau é graduando em História pela Universidade Estadual de Londrina e é orientado em sua pesquisa de TCC pelo professor Drº Lukas Gabriel Grzybowski.

COLLINS, Roger. “Charlemagne”. Londres: MacMillan, 1998.
FAŁKOWSKI, Wojciech. “The carolingian Speculum Principis – The birth of a genre”. Tradução de Agnieszka Kreczmar. Acta Poloniae Historica, n.98, 2008, p.5-27.

GANZ, David [ed.]. “Einhard and Notker the Stammerer: Two Lives of Charlemagne”. Londres: Penguin Books, 2008, E-Book.
GOETZ, Hans-Werner. “Historical Writing, Historical Thinking and Historical Consciousness in the Middle Ages” in Diálogos Mediterrânicos, n.2, Mai, 2012, p.110-28.
HEERS, Jacques. “História Medieval”. Tradução de Teresa Aline Pereira de Queiroz. Universidade de São Paulo, 1974.
HEN, Yitzhak. INNES, Matthew [eds.]. “The Uses of the Past in the Early Middle Ages”. Cambridge University, 2004.
RÜSEN, Jörn. “Historical Narration: Foundation, Types, Reason”. History and Theory, v.26, n.4, Dez, 1987, p.87-97.
______. “Razão Histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica”. Tradução de Estevão de Rezende Martins. Universidade de Brasília, 2001.
WOLFF, Philippe. “O Despertar da Europa”. Tradução de António Gonçalves Mattoso. Lisboa: Ulisseia, 1973.

11 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Olá. Muito interessante seu texto sobre como os registros históricos em questão são frutos de um determinado tempo e seguindo um propósito específico.
    Considerando que pretendo trabalhar os temas históricos em sala mostrando diversos contextos sob os assuntos, acho interessante mostrar outra perspectiva que não a predominante em relatos positivos (ex: o fato de ele mandar incendiar bosques sagrados destinados a cultos pagãos para que fosse implantada "à força" uma cristianização dos grupos).
    Sobre esses relatos "à parte", eles teriam sido produzidos também de modo a exaltar a figura de Carlos Magno e somente hoje são considerados brutais devido à visão mais humanizada da sociedade em que vivemos?

    Analuz Marinho Gonçalves

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    1. Olá Analuz, obrigado!

      É muito importante ter uma visão mais crítica em relação à perspectiva positiva, até porque a visão 'senso-comum' da história carolíngia está muito entrelaçada à própria historiografia produzida por eles.

      Não acredito que as ações mais brutais realizadas particularmente por Carlos Magno tenham sido tão bem recebidas pela cristandade, como a execução de mais de 4 mil inimigos em retalhação durante a batalha contra os saxões, e a destruição de símbolos sagrados, como você apontou. Lembro de ter visto a reação específica de Alcuíno, grande figura intelectual carolíngia (e muito próxima ao rei/imperador), advertir que a conversão se dá mais pela palavra do que pela força. Se você analisar as duas principais biografias do governante, verá que esses eventos não são mencionados, mas sempre há uma justificativa forte às campanhas, ao apresentar os saxões como barbáricos adoradores do demônio. Entendo que as ações especificamente brutais que você mencionou ficaram fora do enquadramento para a memória na história do governante-modelo carolíngio pois o governante-modelo também era um modelo das virtudes cristãs.

      Espero que tenha ficado claro!
      Guilherme Tavares Lopes Balau

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  3. Boa tarde Guilherme,
    Sobre o ensino da História, é notório que o espaço dedicado à História Medieval é muito condensado nos livros didáticos. Seria possível afirmar que, no caso carolíngio especificamente, o ensino ainda se concentra numa imagem imperial gloriosa de Carlos Magno, problematizando pouco seus feitos e os desdobramentos da política carolíngia com seus sucessores, no século IX?

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    1. Olá Renato!

      Com certeza, e adianto que muitos livros de historiografia medieval, com base em minhas leituras, até pouco ainda apresentavam uma versão mais simplificada da "trama" carolíngia.

      Muitas vezes não se vê problematizações em torno de eventos que são questionáveis, mas que se solidificaram no cânone da história, o que pode acabar se refletindo nas produções mais didáticas para ensino. Felizmente há uma produção bastante forte voltada à revisão dessas fontes que tenta apresentar de maneira mais realista suas leituras. Gosto bastante da primeira parte do livro de Roger Collins referenciado no meu texto que faz uma discussão geral com a tendência da historiografia dos francos e sua sedimentação. Acho que partir, na educação, para uma análise através das fontes e de seu contexto de produção é uma ótima ideia para se questionar essa versão mais tradicional da história carolíngia!

      Guilherme Tavares Lopes Balau

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  4. Caríssimo Guilherme, primeiramente quero parabenizá-lo pelo texto.

    Gostaria lhe fazer duas perguntas, a primeira com base nessa afirmação: "A obra de Notker deve ser interpretada à luz da tradição de escrita dos espelhos de príncipes", você enquadra essa obra dentro do "speculum principis", no entanto, alguns historiadores enquadraram a obra de Notker como uma gesta, outros como uma vita. Em certos trechos você fala sobre biografia, afinal, como você classifica essa obra e por quê.

    A segunda, seu título é sobre "os usos da escrita" no tempo carolíngio, ela (a escrita) estava limitada apenas em narras anos, feitos e vida de seus governantes?

    Espero te me feito entender; um abraço fraterno e sucesso na pesquisa.

    At.te Gabriel I. Covalchuk

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    1. Olá Gabriel, obrigado pelo elogio e pela sua pergunta!

      A atribuição de 'speculum principis' pode ser bastante vaga, não é necessariamente um gênero literário específico, tanto que há obras, como 'Via Regia' de Smaragdus de São-Mihiel, contendo conselhos sobre virtudes de um governante, e cartas de Alcuíno (consideradas um modelo da tradição dos specula) que são enquadradas neste fenômeno. Considero as duas obras como as principais biografias do governante pois são escritas justamente para falar sobre sua vida e manter sua memória, diferentemente de crônicas ou anais, entre outros estilos tradicionalmente medievais. Não me recordo de ver discussões em que a tratavam como uma 'vita', é mais comum ver essa atribuição a textos hagiográficos, se puder me referenciar para poder dar uma olhada ficarei muito agradecido!

      A história carolíngia legada para nós se deu de algumas maneiras, algumas intencionais outras nem tanto. Por exemplo, nós podemos interpretar como uma fonte para estudo da história um conjunto de leis, decretos e cartas, que podem não ter tido essa intenção original. Mas o registro intencional da história pelos carolíngios se deu principalmente em formato dos annales, que são anotações geralmente anuais (mas não seguem necessariamente ano por ano, e nem sempre são anotações contemporâneas), trazendo informações sobre as principais ocorrências em cada ano. São a fonte mais variadas produzidas nos diversos conventos pelo reino/império carolíngio.

      Creio que não estava apenas limitada a narrar a história, pois como é apresentado pela minha pesquisa, havia um interesse nessa representação do passado. É uma discussão que pode nos levar até os dias de hoje, mas para nos centrarmos no conteúdo aqui apresentado, devemos considerar que o interesse de representar a história sempre parte da atualidade. Se a história de Carlos Magno é apresentada à posteridade, ela serve como parâmetro de referência que legitima o poder, especialmente no caso de Notker, em que a obra é endereçada ao próprio governante descendente de Carlos Magno. Durante um momento de crise de legitimidade, a memória das conquistas carolíngias serve como um ideal a ser alcançado.

      Espero que tenha respondido sua pergunta!
      Guilherme Tavares Lopes Balau

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  5. Olá, Guilherme. Parabéns pelo texto.
    De fato a temática da Alta Idade Média e o período carolíngio são de extrema importância na escrita e no ensino da História. No entanto, segundo aponta Jacques Le Goff, houve a construção da imagem de Carlos Magno com diversas idealizações, a ponto de ser chamado muitas vezes atualmente de o "pai da Europa", o que esse historiador considera parte da construção do mito, assim como a questão do chamado "Renascimento carolíngio", que a seu ver também teria sido idealizado com exageros, já que o acesso às letras ainda permaneceu restrito a setores aristocráticos da sociedade do Império Franco. Então, diante disso, gostaria de saber a sua opinião sobre esses dois pontos de divergência, a retomada (pretendida) da cultura clássica por Carlos Magno e o discurso idealista presente nas narrativas da época que inspirou o conceito de "Renascimento carolíngio" em tempos modernos.
    Obrigado pela atenção.

    Daniel Roberto Duarte Granetto.

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    1. Olá Daniel, obrigado!

      Sem dúvida, a imagem construída sobre Carlos Magno e o 'Renascimento Carolíngio' carregam um peso considerável da idealização construída tanto na posteridade imediata quanto em tempos mais recentes.
      Creio que temos de levar em consideração uma visão anacrônica produzida em grande parte pela historiografia tradicional e pelas filosofias da história para entendermos essa concepção idealizada. Nessa tradição de pensamento, um personagem, evento ou fenômeno do passado se torna mais relevante para a posteridade do que para sua própria realidade, como um tipo de anunciação das carências do futuro. Por exemplo, Carlos Magno se tornou um símbolo de uma construção de identidade do século XVIII em diante (mesmo antes disso), mas podemos olhar até mais atrás e ver evocações semelhantes em Alexandre, o Grande, como uma figura envolvida entre a diferenciação dos mundos ocidental x oriental para a concepção do século XIX. Eu acredito que esse fenômeno tem relação com as carências de orientação no tempo dos períodos em que as representações históricas são construídas. O passado carrega um peso de legitimação e de identidade, e atribuir uma noção de continuidade com essa representação do passado serve aos interesses do presente. É por isso que os discursos historiográficos são fontes de pesquisa tão importantes - permitem que busquemos justamente essas carências e suas relações com o tempo de sua produção contemporânea, para além de uma pesquisa sobre a factualidade das ocorrências do passado.
      Em relação ao Renascimento Carolíngio, creio que leva essa fama por conta, pelo menos, de dois processos importantes.
      Primeiro, quem se beneficiou de imediato desse fenômeno foi quem detinha o acesso ao conhecimento, que após a desintegração da adminstração romana que demandava o letramento para funcionários, era principalmente o corpo clerical, e foram eles quem escreveram a representação, no período subsequente, sobre o fenômeno de "resgate" da cultura. Isso fica claro no texto de Notker, que ao longo de toda a obra o rei/imperador é exaltado como amante do conhecimento, e afins. Segundo, boa parte de manuscritos preservados da cultura romana deve sua preservação aos copistas carolíngios envolvidos nesse período, que de fato proporcionou um grande impulso na produção e redação de textos. Se comparamos os números de manuscritos produzidos durante o século VIII com o século IX, vemos que o incentivo ao letramento (que também auxiliou o trabalho "admnistrativo" nos domínios carolíngios) foi muito efetivo. Então comparando a produção humanística precedente, o renascimento carolíngio trouxe uma difundida preservação de textos clássicos que, se não tivessem sido beneficiados pelo fenômeno, teriam sido certamente perdidos. É de se entender que na tradição escrita, o renascimento carolíngio tenha sido louvado pela importância na preservação dessas obras. Não me lembro com certeza agora, mas se não me engano obras como comentários sobre a guerra da gália, de Júlio César, e da república, do Cícero, sobreviveram até nossa contemporaneidade através de manuscritos carolíngios datando desse período em questão.

      Espero que tenha respondido sua pergunta, obrigado pela reflexão!
      Guilherme Tavares Lopes Balau

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  6. Olá!É no domínio do pensamento,do livro e da liturgia que o Império carolíngio conhece seus sucessos mais duradouros.
    Logo é evidente a importância da escrita nesse processo. Gostaria de saber se é possível criar um paralelo com a escrita da época no sentido de busca por hegemonia, existia essa relação?

    Grato desde já!

    Fernando Moreira Dos Santos Da Costa.

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    1. Olá Fernando!
      Creio que esteja falando sobre uma busca de hegemonia no espaço intelectual? Se for isso, acredito que sim! É claro o papel do fortalecimento do letramento em relação a, por exemplo, a disputa da perspectiva católica romana contra as heresias, e a padronização da liturgia, etc. Ademais, também há uma monumentalização da história carolíngia na memória através da narrativa das fontes escritas, principalmente os anais produzidos nos domínios do reino/império. Isso cria uma esfera de consciência intelectual que espelhava os interesses dos envolvidos.

      Obrigado pela atenção,
      Guilherme Tavares Lopes Balau

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